Diálogos: Revista de Estudos Culturais e da Contemporaneidade, v. 3, p. 5-24, 2017.
Resumo
A partir da análise de um episódio dos Trapalhões, seriado exibido pela Rede Globo por cerca de vinte anos, buscaremos destacar a maneira pela qual o racismo brasileiro se consolida a partir da lógica da mestiçagem – entendido aqui como um sistema no interior do qual o racismo se instaura. Contrariando a percepção de que a mestiçagem seria de certa forma contrária ao racismo, nossa hipótese é que o racismo brasileiro se estrutura por meio da mestiçagem, e não em oposição a esta, organizando-se como um sistema em que a miscigenação e a consequente impossibilidade de delimitações étnicas estritas é o modo mesmo com que a negritude é fixada enquanto espaço virtual de negatividade e ausência. A possibilidade de construção da negritude enquanto uma espécie de não-lugar onde a identidade mestiça pode ser revogada a qualquer momento é o que, no limite, sustenta a pluralidade mestiça.
palavras-chave: racismo, mestiçagem, Trapalhões, cultura de massas, ideologia
Abstract
Based on the analysis of an episode of Brazlian sitcom “Os Trapalhões”, aired by Rede Globo for about twenty years, the present work seeks to highlight the way in which the Brazilian racism is generated based on the logic of miscegenation – understood as a system within which racism is established. Contradicting the perception that miscegenation would be somewhat contrary to racism, We hypothesized that Brazilian racism is structured through miscegenation, and not in opposition to this, therefore, being organized as a system under which miscegenation and the consequent impossibility of strict ethnic boundaries become the way through which blackness is set as an area of negativity and absence. The construction of blackness as a kind of non-place where the mestizo identity may be revoked at any time is that, ultimately, supports the mestizo plurality. The construction of blackness as a kind of non-place where the mestizo identity may be revoked at any time is what, ultimately, supports the mestizo plurality.
keywords: racism, miscegenation, Trapalhões, mass culture, ideology
Sobre um episódio (genial) dos Trapalhões
O racismo brasileiro é um campo específico de grande complexidade, entre outras coisas pela forma profundamente ambivalente que assume no interior do senso comum: por um lado existe uma percepção até certo ponto bastante clara de sua existência, a consciência de que o Brasil é um país profundamente racista; por outro, segue em vigor um sistema que torna impossível o reconhecimento e a delimitação de casos concretos, sobretudo pela concretude do paradigma da mestiçagem, cuja fórmula é a impossibilidade de delimitação precisa das diferenças – a velha percepção de que “no Brasil não dá pra saber quem é preto ou quem é branco”i, configurando certa impossibilidade estrutural de se estabelecer com precisão a existência de raças claramente definidas no país.
Ora, se existe algo que o sistema racista brasileiro pode oferecer ao mundo é justamente a possibilidade de inversão do senso comum ideológico que afirma que o racismo é criado a partir das diferenças raciais e étnicas. Ao contrário, ao observarmos o sistema local de organização do racismo, podemos dizer que é este quem organiza seu próprio sistema de diferenças e a consequente desigualdade racial. Pois apesar de não ser possível sustentar diferenças naturais e biológicas significativas entre as raças (conceito este que, no limite, é uma ficção entre outras), o aparelho repressor racista segue funcionando com grande eficiência, a ponto de ser possível sustentar a existência de um verdadeiro processo de genocídio da comunidade negra brasileira.
Creio ser interessante apresentar aqui um exemplo do campo da cultura de massas, onde os conteúdos ideológicos tendem a assumir formas desabusadas e de alcance mais geral. Um episódio do antigo seriado Os Trapalhõesii, transmitido pela Rede Globo por cerca de vinte anos (1977-1997), oferece um bom exemplo para compreensão dessa ausência de fundamento do sistema ideológico racista. Nele, os quatro protagonistas – Didi, Dedé, Mussum e Zacarias – encontram sérios problemas para definir quem é que vai utilizar primeiro o único banheiro da casa. Num primeiro momento, Mussum (o único negro) chega feliz à frente de todos os outros que, contudo, protestam. Desconfiado, Mussum alega que está havendo racismo por parte de seus companheiros (que, segundo ele, sentem inveja de seu “coloridis”). Os demais revidam energicamente e, dispostos a acabar com qualquer dúvida – deixando claro que ali “todo mundo é igual” – decidem organizar a fila a partir de critérios imparciais. Após alguma confusão, decidem-se pelo critério de altura para definir a posição na fila, em ordem crescente – do menor para o maior. Respectivamente Zacarias, Didi, Dedé e, por último, Mussum. Ele protesta ainda mais uma vez (“racismis!”), mas Zacarias é inflexível: “Não reclama não, que foi tudo escolhido democraticamente”.
Próxima cena, outro dia, mesma confusão, e de novo é Mussum quem chega primeiro. Dessa vez ele não aceita o critério de organização por altura (“vai dar problemis”), no que os amigos concordam, decidindo organizar a fila por idade – outro critério “imparcial” -, agora em ordem decrescente, do mais velho para o mais novo. Zacarias, Didi, Dedé e, por último, Mussum. Mais protestos de racismo, prontamente recusados (“Aqui não tem racismo. Foi tudo organizado por idade e por altura”). Mussum se conforma, não sem antes comprometer-se a chegar primeiro no dia seguinte, o que efetivamente acontece. Dessa vez logo de cara deixa claro que ali está configurada uma situação de racismo. Didi então faz uma proposta ousada, disposto a acabar de vez com todas as dúvidas: a partir dali não existe mais nenhuma diferença de cor, “nem verde, nem preto, nem amarelo, nem nada”. Todos os que estão ali tem uma cor só: azul. Os quatro parecem satisfeitos com a decisão, mas surge uma dúvida levantada por Mussum, que de certa forma condensa todo o enigma racial brasileiro. “Mas se todo mundo agora é azul, como estabelecer o critério de organização da fila do banheiro?” “Simples”, responde Didi, “os azul-claro na frente, e os azul-escuro atrás”. Close na cara de decepção do Mussum. Fim do esquete.
O quadro capta de maneira magistral o modus operandi do racismo, e o lugar que nele ocupa o conceito de raça. O primeiro movimento de legitimação da desigualdade é a escolha de critérios equânimes e democráticos, de modo que todos tenham as mesmas oportunidades. Obviamente, a grande sacada aqui está na escolha do foco narrativo: mais importantes que os critérios em si é saber quem vai defini-los, o lugar a partir de onde essa igualdade irá se constituir. No caso, os companheiros adotam critérios incontestavelmente neutros e imparciais, como idade e altura. Afinal, é perfeitamente possível e até mesmo desejável que se elejam estratégias e conceitos os mais democráticos e igualitários possíveis (idade, altura, concursos, eleições, vestibular, etc.) desde que sejam estabelecidos por quem irá obter com eles todas as vantagens. Além disso, tais critérios podem estar em mudança constante, desde que o dado concreto da desigualdade não se altere. A ordem dos fatores não altera o produto, e a verdade quase sempre pode funcionar muito bem como instrumento ideológico a mais.
Desde o início Mussum expressa sua revolta, deixando à mostra a estrutura básica daquele sistema opressor. Ele ocupa aqui a função marxista clássica de crítico da ideologia, desvelando o real por detrás das aparências, o que, de todo modo, era evidente desde o início, constituindo a matriz do riso: “To desconfiadis que aqui tem racismo. Vocês tão com inveja desse coloridis aqui que eu tenho”. Por detrás de critérios aparentemente igualitários está em funcionamento um mecanismo de exclusão que legitima o status quo, no caso, a ordem sobre quem deve tomar banho primeiro e, sobretudo, sobre quem deve ficar por último, o verdadeiro ponto nodal da piada (é interessante notar que a disputa não é pelos primeiros lugares, e sim para decidir quem vai ficar por último, o que localiza melhor a gag em um contexto de precariedade periférica onde ninguém está, a rigor, por cima da carne seca, mas todos lutam até o fim pela conquista de pequenas satisfações cotidianas).
É claro que o efeito de humor está em grande medida na dissimulação. Eu nada mudo de fato: apenas substituo o significante branco por azul claro, e negro por azul escuro, o que garante a perpetuação da mesma lógica. Mas será que nessa “mera” mudança de significante já não se desvela algo da própria natureza do racismo? Essa possibilidade de transmutação e subversão dos termos não é em si reveladora de que seu fundamento não é a ideia de raça, ou cor, e sim sua própria realidade enquanto instrumento de opressão? A principal lição que a gag nos transmite é que o racismo segue existindo independentemente de quais sejam os critérios usados para sua legitimação. De certo modo ele está para além de conceitos legitimadores como “raça”, “etnia”, “supremacia”, etc., na exata medida em que direciona os significantes conforme seus interesses e de acordo com cada momento. Ou seja, o racismo pode funcionar perfeitamente bem tanto com o conceito de supremacia ariana quanto com o de mestiçagem, (ou o de diferentes tonalidades multiculturais de azul) desde que, em todas as fases da opressão, seja o negro que continue tomando banho por último.
Mais precisamente, “negro” será o resultado desse processo de exclusão montado pela “equação” racista. Mesmo quando a ideia de raça negra é radicalmente abolida do campo discursivo (“agora todo mundo é azul, cambada”), a situação concreta de opressão continua. Portanto, o que torna Mussum “negro” não é o fato dele ser\pertencer à raça negra – uma ficção entre outras -, e sim sua posição, imposta arbitrariamente, como último da fila. “Raça” no caso é um dos significantes mobilizados pelo racismo enquanto aparelho ideológico, mas não é o único e, sobretudo, não é insubstituível. Em suma, pode existir racismo mesmo onde os sujeitos não constroem sua identidade claramente em termos étnicos, porque a verdade desse conceito é “meramente” simbólica e não diz respeito diretamente à materialidade empírica, e sim à rede de significados que emanam desse sistema ideológicoiii.
Daí certa redundância em afirmar que o conceito de raça não existe (é justamente dessa redundância que Didi, Dedé e Zacarias se aproveitam para promover o racismo), enquanto estratégia de combate ao racismo pois, em certo sentido, essa inexistência é seu ponto de partida. Isso porque o conceito “raça” não está nomeando sujeitos empíricos com um conjunto de características essenciais e cientificamente comprovadas – pode haver mais diferenças entre indivíduos de uma mesma raça do que entre raças diferentes – e sim uma dada situação específica em que sujeitos com um conjunto determinado de características culturais, fenotípicas, sociais, etc., estão sendo exterminados. Usando uma distinção semiótica, digamos que o conceito não é da ordem do ser (ser negro), mas da ordem do fazer (tornar-se negro). Não se trata de determinar se o sujeito que foi discriminado é, de fato, da raça negra – nesse caso, o argumento comum é o de que o que houve foi uma discriminação social e que o racismo, portanto, não aconteceu – pois isso seria inverter os termos da questão. Por paradoxal que possa parecer, a questão é que tais sujeitos não foram ou poderiam ser exterminados porque são negros (ninguém é negro ou branco de fato), mas eles se tornam negros porque foram, ou podem ser, exterminados, no interior de uma dinâmica racista. É o racismo que cria a raça como seu fundamento, e não o contrário.
Podemos dizer, com Althusser (Althusser, 1996), que é o Aparelho Ideológico racista que interpela esses indivíduos enquanto negros – é o racismo que cria e dá forma ao conceito de raça – assim como pode substituí-lo por outros significantes que lhe forem convenientes, como azul, verde, pescoço fino, nariz alongado, etc. Da mesma forma que o sistema brasileiro de exclusão social impede que os potenciais emancipatórios inscritos em espaços com ampla participação popular como o futebol e a canção se realizem no restante da sociedade (Wisnik, 2008), o racismo impede que parcela significativa de sua população se realize enquanto brasileiros, a despeito da forma como esses constroem sua identidade.
Racismo sem raça
Um primeiro passo importante para compreender o sistema racismo brasileiro é, portanto, inverter o senso comum que pressupõe que são as diferenças raciais que tornam possível o racismo. Pois um aspecto importante dos mecanismos ideológicos é que eles atuam como um sistema fechado que instaura seus próprios fundamentos. O filósofo político argentino Ernesto Laclau, após analisar o caso da ideologia fascista em Política e ideologia na teoria marxista (Laclau, 1979), concluiu que esta não passava, no fundo, de um conjunto de elementos heterogêneos de origens diversas (elitismo aristocrático, populismo nacionalista, enraizamento rural, culto militarista, etc) que não chegava a formar um conjunto ideológico consistente, dado que levou a conclusão de Adorno de que o fascismo não era uma ideologia enquanto tal, mas tão somente uma mentira, pura e simples. Entretanto, essa falta de homogeneidade cumpria perfeitamente bem seu papel ideológico, no sentido de funcionar enquanto mecanismo de manutenção do poder e elemento de “coesão” social, que no limite implode a própria noção de ideologia enquanto falsa consciência, posto que essa não procede à maneira da argumentação racional que “distorce” a realidade, mas apela diretamente ao “sacrifício incondicional” e irracional do sujeito. Ou seja, a despeito dos significantes parecerem “frágeis” e incoerentes no interior da ideologia nazista, a obediência “espontânea” dos sujeitos a seus desmandos prova que o sistema funcionou perfeitamente. Uma ideologia logra pleno êxito quando até os fatos que à primeira vista a contradizem começam a funcionar como argumentos a seu favor:
“Ora, o fascismo marca precisamente o ponto em que desmorona esse modo tradicional de conceber a ideologia como ‘consciência falsa’ – ele não procede à maneira da “argumentação racional”, mas funciona, ao contrário como apelo direto ao assujeitamento e ao sacrifício “irracional”, “incondicional”, apelo este legitimado, em última instância, pela própria facticidade de sua força performativa […] o poder do discurso fascista deve ser buscado, precisamente, no que a crítica “racionalista” censura nele como sua “impotência”, isto é, na ausência da “argumentação racional”, no caráter puramente “formal” da demanda apodítica da fé e do sacrifício absurdo\incondicional”
ZIZEK, 1992, pp. 25-26
Para Laclau, portanto, o sentido último desses elementos desestruturados não deve ser tomado em si, mas enquanto efeito da estruturação específica dessa ideologia. Eles funcionam como “significantes-soltos” cujo sentido é fixado por seu modo de articulação hegemônica. Ou seja, nenhum desses elementos é fascista em si, mas se tornam fascistas à medida que esse sistema logra tornar-se hegemônico. “Uma ideologia desempenha um papel “hegemônico” quando consegue investir nos elementos decisivos, mas em si “neutros”, de um dado campo ideológico” (Zizek, 1992, p. 27). A análise do sistema ideológico fascista permite compreender que não existe nenhuma relação orgânica natural entre o sistema ideológico e seus conteúdos objetivos, que podem então ser disputados, mudar de função, etc. É o sistema ideológico que, em última instância, dota de sentido seus conteúdos, criando seus próprios fundamentos.
Assim, com relação à ideologia racista, é preciso inverter a fórmula do senso comum (“existe racismo em razão das diferenças raciais”) e compreender a raça não como causa, mas como um efeito prático do racismo. É o racismo que instaura o absurdo da diferença de raças, e não o contrário. Encarado a partir dessa inversão, torna-se teoricamente compreensível a existência do racismo em um contexto onde os sujeitos não criam uma comunidade étnica, pois independente de seus conteúdos objetivos o racismo irá criar sentidos específicos para negro, asiático, mestiço, etc. Não existe, portanto, uma inviabilidade estrutural que impeça a existência do racismo em um contexto marcado por identidades transétnicas, dado a relativa arbitrariedade de sua cadeia de significantes ideológicos. Marcadores como “raça”, “cor”, “negro”, “branco”, “mestiço”, podem assumir aspectos diversos e cumprir diferentes funções a depender de cada contexto, desde que o objetivo final de segregação se realize. É perfeitamente possível, pois, considerar a existência de um racismo em um contexto em que a negritude não é marcada etnicamente, como no caso brasileiro.
A produção social do negro brasileiro
Em suma, o que explica que o racismo possa ocorrer em contextos tão diversos (Brasil, Haiti, Estados Unidos) é que em todos os casos se alcança o mesmo objetivo, a produção de seu fundamento último: o “corpo negro” excluído. Obviamente, o significante “negro” comportará conteúdos diferentes em cada contexto. Garantidas, contudo, as bases da exclusão social – e essa se dará também de muitas formas – estas podem realizar-se a partir de inúmeros critérios de identidade étnica, mesmo onde esses aparentemente não existem. No caso brasileiro, em que a identidade dos descendentes negros de escravos é representada enquanto mestiça e transétnica, o racismo será o instrumento por meio do qual esse fluxo é interrompido, lembrando ao sujeito que sua identidade não lhe pertence.
Estabelece-se assim uma interessante dialética entre indefinição e rigidez, cuja forma de administração é uma das marcas de nossa dominação cordial. Como não existe a definição de uma origem étnica precisa à qual o sujeito vincula “espontaneamente” sua identidade (em um levantamento do IBGE feito em 1976, um dos poucos em que a atribuição da cor era espontânea, foram citadas mais de 130 definições diferentes)iv, cabe aos diversos mecanismos ideológicos – instituições, habitus, discursos, etc. – marcar aqueles que serão excluídos da ordem social como negros. A função da polícia é precisamente essa: diante de um contexto de indefinição (quase) absoluta, definir quais atributos e situações “marcam” um sujeito como resto descartável.
O interessante a se observar é que o caráter naturalmente híbrido da mestiçagem, quando no interior desse mecanismo de dominação, não só não impede a discriminação racial, como permite que esta se organize enquanto sistema de arbitrariedades. Nesse sentido, podemos afirmar que a “definição negra”, imposta externamente como um atributo que se cola ao sujeito, depende da “indefinição mestiça”, que faz do corpo um campo propício à manipulação. É precisamente por ser a tal ponto flexível e maleável que a identidade mestiça pode ser “revogada” a qualquer momento. Não existem garantias de que o sujeito que está mestiço não seja tornado negro de uma hora para outra, dependendo de sua posição no sistema de poder. O racismo institui essa revogação, regulando o que é da ordem da indefinição com a arbitrariedade. O racismo brasileiro não se preocupa com definições de uma legitimidade a priori – sujeitos negros com características claramente delimitadas – pois ele é o próprio nome do processo de definir corpos como descartáveis.
Como vimos, o enigma segue incompreensível caso se procure entender o racismo como consequência da diferença racial, pois raça aqui é um termo móvel, em negociação, que pode ocupar diversos campos do espectro, valendo em alguns momentos e lugares e em outros não. O racismo atua muito mais na gestão dessas características, atribuindo peso e valor, distribuindo papeis e lugares, ora acentuando ora atenuando características em um mesmo sujeito, definindo no processo quem irá levar vantagem e quem sofrerá as consequências.
Se por um lado a flexibilidade étnica da identidade brasileira, dentro das condições sociais vigentes, apresenta uma precariedade que torna possível a dimensão arbitrária da determinação racista, por outro, e invertendo o esquema, é a certeza de que existem lugares em que as diferenças são violentamente mantidas que permite que essa fluidez seja apropriada enquanto símbolo de identidade nacional. Esse é, aliás, o sentido profundo do verso “Ninguém é cidadão”, da canção Haiti (de Caetano Veloso e Gilberto Gil): uma vez que em um contexto mestiço qualquer um pode ser “marcado” enquanto negro, ninguém está completamente livre da arbitrariedade do poder, fazendo de todos cidadãos precários em potencial. Essa “precariedade”, que assusta a todos dado seu grau de instabilidade (a polícia sempre pode tratar qualquer um como negro), será, por assim dizer, compensada, ao tornar um conjunto bem específico de sujeitos o alvo explícito da violência, especificidade que não tem absolutamente nada a ver com características imanentes ao grupo, mas que é construída pela repetição do processo de exclusão. Ninguém é preto ou branco, mas existem lugares sociais bem delimitados em que a negritude e a branquitude estão asseguradas. É nesse sentido que a inconsistência da mestiçagem precisa do espetáculo cotidiano da violência contra um grupo específico, garantindo que nem todos possuem uma identidade precarizada ou que, pelo menos, alguns são mais iguais que outros. Celebração da mistura mestiça (carnaval) e celebração do extermínio de uma única comunidade étnica (Programa do Datena) são modelos complementares. É somente a partir dessas certezas, desses lugares fixos construídos pelo racismo, que os “encontros culturais” e as misturas podem acontecer.
Nesse ponto se compreende a relação profunda entre mestiçagem e violência. A fluidez da identidade só se torna possível diante da certeza da delimitação do lugar do negro, fundamento negativo da identidade nacional, reiteradamente preenchido, muitas vezes de forma espetacular. Assim, o aparente paradoxo contido na síntese iluminadora de Lilia Schwarz (“todo brasileiro se sente uma ilha de democracia racial cercada de racistas por todos os lados”) é desfeito: todo brasileiro se sente uma ilha de mestiçagem racial porque está cercado de negros violentos por todos os lados (Schwarcz, 1998).
Por isso é possível afirmar que onde a identidade étnica não é assumida pelos negros brasileiros em seu cotidiano, ela é violentamente imposta de cima para baixo, ressignificando características físicas e culturais. No limite, a violência vai fundar a etnicidade, cabendo aos diversos aparelhos ideológicos e repressivos a decisão por marcar racialmente seus cidadãos. Os exemplos em que a identidade mestiça é revogada, expondo os sujeitos à não-identidade negra, são vários. Chico Buarque revelou recentemente que sua filha, casada com o baiano Carlinhos Brown, teve que se mudar de um condomínio de luxo na Gávea, Rio de Janeiro porque seus netos estavam sendo discriminados. O ator global Vinícius Romão de Souza, de 26 anos, ficou 16 dias preso em São Gonçalo, RJ, por ser confundido com um ladrão. DG, bailarino do programa esquenta, também da Rede Globo, foi morto pela polícia na favela do Pavãozinho. O dentista Flávio Ferreira Sant’Ana, de 28 anos, foi morto pela polícia ao também ser “confundido” com um ladrão. Esses são apenas alguns dos episódios recentes que ganharam certo destaque na mídia. A grande perversidade no caso é que esses exemplos recorrentes não servem para deslegitimar o sistema, desmascarando sua arbitrariedade (afinal, se o sujeito de pele escura migrou de classe e “embranqueceu”, qual a justificativa para o racismo?). Ao contrário, essas mortes funcionam como prova do perigo “negro”, pois, dado o caráter mestiço do brasileiro, este tem condições de se “disfarçar” e passar desapercebido, assumindo as formas mais insuspeitas. Nesse caso, cabe à polícia manter vigilância redobrada para proteger os cidadãos de bem, o que em termos concretos significa “produzir” mais negros.
Em suma, a mestiçagem aparece aqui na forma de um complexo dispositivov por meio do qual os brasileiros se reconhecem, respectivamente um modelo identitário que adota o padrão priorizado no Novo Mundo, não centrado na etnicidade; uma forma de resistência cultural, como a maneira que comunidades negras encontraram de manter suas tradições em um contexto em que elas foram por diversas vezes proibidas (o samba, a capoeira, as religiões de matriz africana, etc.); um modelo de dominação que funciona pelo apagamento da memória cultural e étnica que só pode existir como o inteiramente novo num contexto de uma “violência sem trauma” que atua por um processo duplo de eliminação física e simbólica, o crime perfeito que não deixa cadáveres; e um mecanismo discursivo que permite aos sujeitos movimentarem-se no interior dessas relações de poder a partir de um código comum que os confirma enquanto brasileiros. A complexidade de seu ponto de vista mimetiza a complexidade de seu objeto, e deriva daí sua força estética.
Monstruosidade negra
Creio ser pertinente aqui – para seguirmos mais um pouco no campo da cultura de massas – utilizarmos a metáfora algo clichê dos “Invasores de Corpos”, comum em ficções científicas como Alien, o oitavo passageiro, ou O enigma de Outro Mundo. Toda tensão nesses filmes decorre do inimigo aterrador não ser imediatamente identificável. Todas as pessoas parecem iguais, desempenham normalmente suas funções até que, de repente, descobre-se que haviam sido atingidos por um mal (exterior) que eclode de dentro delas (interior) de surpresa, e com consequências devastadoras.
Para o senso comum da brasilidade, retratada o tempo todo em programas de televisão e discursos oficiais, somos todos iguais apesar das diferenças: sabemos nos divertir (e como!), levar a vida de forma leve, sem nunca desistir diante das dificuldades, etc. Um só povo e uma só raça, fruto da mistura de todas as outras. Todos cumprem normalmente suas funções de brasilidade até que a polícia resolve indicar, com um tiro na nuca, os tipos negros suspeitos habituais. De repente, aqueles que se portavam como pacatos mestiços brasileiros revelam-se enquanto marginais negros aterradores. Também nesse caso, aquilo que é imposto ao sujeito de fora aparece enquanto “mal” interno cujo objetivo é exterminar a raça mestiça. Uma vez que o sujeito foi tornado negro, por exemplo, pela violência policial, confirma-se que ele já era negro desde o início. O “suspeito” é imediatamente “culpado”, e a “prova” é que ele foi morto. O pardo pobre é aquele que contém em si a negritude monstruosa que pode eclodir a qualquer momento para destruir o país. Deve, portanto, ser exterminado, para a segurança do resto da tripulação, incapaz de reconhecer o inimigo.
Pode-se dizer que a polícia militar brasileira e seu conjunto de práticas assassinas e discriminatórias são os mecanismos principais de sustentação do racismo no país. Segundo Luiz Eduardo Soares, o crescimento da população penitenciária no Brasil, com seu perfil social e de cor acentuadamente marcado, assim como a perversa seleção de quais crimes são punidos deve-se, sobretudo, “à arquitetura institucional da segurança pública, em especial à forma de organização das polícias, que dividem entre si o ciclo de trabalho, e ao caráter militar da polícia ostensiva” (Soares, 2013). Tal sistema é marcado pela total falência do sistema investigativo e por sua incapacidade crônica de prevenção.
“Entre 1980 e 2010, 1.098.657 brasileiros foram assassinados. O país convive com cerca de 50 mil homicídios dolosos por ano. A maioria das vítimas é jovem, pobre, do sexo masculino e sobretudo negra. Desse volume aterrador, apenas 8%, em média, são investigados com sucesso […] Mas não nos precipitemos a daí deduzir que o Brasil seja o país da impunidade, como o populismo penal conservador e a esquerda punitiva costumam alardear. Pelo contrário, temos a quarta população carcerária do mundo e, provavelmente, a taxa de crescimento mais veloz”.
SOARES, 2013, p. 18, grifos nossos
Além de não evitar mortes violentas e de não as investigar, o estado brasileiro prende muito, ainda que não de forma generalizada, pois as prisões se voltam para um grupo bastante específico. O ciclo do trabalho policial brasileiro (preventivo, ostensivo e investigativo) é dividido, ou seja, existe uma polícia que investiga, procurando avaliar, planejar, diagnosticar, e uma polícia – a PM – que prende. Sendo essa a mais cobrada em seus resultados pela sociedade, e de longe a que mais recebe investimentos (insuficientes), ela faz a única coisa que é capaz de fazer (e o interessante é que Luiz Soares não atribui isso a uma questão de competência, mas à própria forma como a instituição é montada): procurar o flagrante, flagrar a ocorrência e capturar, ou matar, o suspeito.
Ora, uma polícia que não investiga é estruturalmente incapaz de determinar quais são, efetivamente, os culpados – essa função cabe à outra, que tampouco funciona (apenas 8% dos casos são investigados). Por isso, a PM se torna uma verdadeira máquina de produzir suspeitos, que serão, obviamente, membros dos grupos sociais mais vulneráveis. Desprovido da atribuição de pensar, o policial irá projetar os preconceitos da sociedade no exercício de sua vigilância. Sua função é a de materializar, tornar reais, os piores pesadelos da sociedade, mantendo a ordem pelo medo e pela violência. “Ela não investiga, porque a fratura do ciclo, prevista no modelo, não permite. Ela está condenada a enxergar o que se vê na deambulação vigilante, em busca dos personagens previsíveis, que confirmem o estereótipo” (Soares, 2013, p. 19). Desprovida da capacidade de investigar para encontrar verdadeiros culpados, a polícia passa a classificar personagens, biótipos, gestos, linguagem corporal, com o objetivo de produzir mais presos, ou corpos. O negro será resultado direto dessa prática policial que transforma uma série de estereótipos preconceituosos e suposições em prova incontestável de culpa.
*
A construção simbólica de uma ordem social mestiça mais “humanizada”, que aprendeu a conviver de uma forma inclusiva com a alteridade, incorporando elementos das mais diversas etnias a seu modo de ser, – o “mundo sem culpa”, na expressão de Antonio Candido, mais tolerante e potencialmente dialógico – depende estruturalmente dessa possibilidade sempre aberta de fixação arbitrária de não-sujeitos a serem excluídos. Arbitrariedade essa que se inscreve na forma mesma de organização do aparelho repressor do estado brasileiro, que transforma juízos preconceituosos em acusação e, na sequência, em prova de culpa. Para que a mestiçagem funcione sem gerar uma ordem social mais justa – afinal, o segredo da diferença brasileira – é preciso que permaneça em aberto a possibilidade de demarcação precisa de corpos descartáveis, a serem preenchidos cotidianamente a partir das fantasias sociais mais obscuras. No limite, a indefinição mestiça “libera” os corpos para que sua identidade seja fixada a partir de fora. A inversão da fórmula racista (é o racismo que cria a raça) permite, pois, compreender de que modo tal sistema foi capaz de se realizar em um contexto marcado por identidades transétnicas e mestiças como o nosso. Quando gerenciada por mecanismos de dominação personalistas, o padrão mestiço de indefinição étnica, a despeito de não fornecer elementos de identificação comunitária, funciona perfeitamente bem enquanto dispositivo de poder.
Referências bibliográficas
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Filmes
ALIEN, o oitavo passageiro. Dir. Ridley Scott, 1979.
O ENIGMA do outro mundo. Dir. John Carpenter, 1972.