Em meados de 2012 foi feita uma votação em um site de crítica cinematográfica (creio que era o Omelete), para decidir quais as melhores séries de comédia de todos os tempos na opinião dos leitores. Friends e Simpsons, como era de se esperar, ficaram bem posicionadas, mas o primeiro lugar absoluto ficou com o Chaves. Lembro que os comentaristas – que obviamente preferem os seriados americanos, como é comum de acontecer com a geração TV a cabo, que tampouco suporta dublagem – tentavam explicar o sucesso do seriado a partir de alguns lugares comuns, como sua pretensa “simplicidade”, ou a partir de questões de ordem afetiva: como teria permanecido muitos anos na TV aberta, as pessoas teriam uma identificação sentimental maior com ela do que com os outros seriados, etc. Creio que essa explicação, apesar de “verdadeira” em um sentido bem específico, consegue dar conta apenas de um aspecto reduzido da questão, muito mais complexa. Um dos aspectos que tencionam essa explicação é uma variação do paradoxo do Tostines (alguém se lembra?): afinal, ele vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? Creio que a única resposta possível nesse caso seria: as duas coisas, o gato E o Kiko. É evidente que as pessoas se identificam muito com o Chaves porque a série passa insistentemente na televisão (muito obrigado fixação neurótica-obssessiva de mister Senor), mas esse argumento deixa sem resposta a questão principal, a saber, porque especificamente esse o programa escolhido, ao invés de qualquer outro, e como diabos ele continua fazendo rir gerações tão distintas? Porque se a questão é a repetição, poderia ser qualquer um. Qual é a substância do mito? Outros programas que estão no ar desde os primórdios da criação do mundo, como “A praça é nossa”, ficam anos-luz de manter a vitalidade que a turma da vila possuía. Centrar-se exclusivamente na questão da transmissão e da audiência como parâmetro de explicação equivale a dizer que o Exorcista só é um grande filme ou o Hitchcock um grande diretor porque foram vistos por muita gente. Inverte-se a questão como forma de escapar ao núcleo do problema.
O aspecto a meu ver mais certeiro da produção d”El Chavo del Ocho”, responsável pelo alto grau de identificação em toda periferia latino americana (já disseram que o seriado é a única unanimidade da América Latina), é a representação da Vila enquanto espaço de figuração da realidade miserável de um país capitalista de terceiro mundo. E se trata de uma alegoria nada simplória, com um grau muito interessante de complexidade. A alegorização da realidade periférica no programa é realmente muito boa, e se aproxima muito daquela qualidade que um cara como o Glauber Rocha identificava no Zé do Caixão, uma espécie de arte da precariedade, que só poderia ser produzido aqui, capaz de lançar um olhar “privilegiado” (o tal do privilégio epistemológico da periferia) para as contradições da sociedade. Inclusive seu caráter formalmente primário, tosco, com aqueles efeitos especiais bem safados, contribuem no sentido de construir uma estrutura assumidamente periférica, usando as limitações formais como elemento criativo. Como diz Luiz Felipe do Santos, do blog Impedimento:
“Tudo isso nos une, de Tijuana a Ushuaia; sempre vai ter um vizinho com uma bola que queremos e não podemos ter, sempre vamos apanhar por algo que não fizemos, às vezes seremos expulsos da nossa vila por um crime que não cometemos, e sempre terá Acapulco para irmos nos divertir mesmo sem pagar 14 meses de aluguel.
Essas contradições são tipicamente latino-americanas. Bolaños pode não ser o melhor roteirista do mundo, nem do seu país. Poderia ter ideias que não condizem com a sua prática – mas qual outro conseguiria trazer realidades tão caras a nossa situação política e social?”
Todos as personagens da Vila são pobres que vivem em condições precárias. São personagens fragilizados, a um só tempo portadores de valores universais (a fragilidade do humano atravessa todos os personagens de forma não maniqueísta) e delimitados por condições históricas precisas, especialmente de classe. Uns mais, outros menos, é verdade, mas ainda assim, sem exceções. Inclusive a personagem mais claramente abastada, o seu Barriga (pra quem não sabe, morador da rua Baleia, esquina com a rua Cachalote, na vila dos Elefantes, e que nos primeiros episódios de Chaves era apenas o zelador da Vila), não é lá essas coisas em termos de classe social – no máximo, uma classe média precarizada. Ele é obrigado a manter uma relação muito pessoal com os moradores, cobrando pessoalmente o aluguel – rico que é rico terceiriza e não tem “pena” dos inquilinos – e deixando claro em mais de um episódio que aquela Vila chumbrega e caindo aos pedaços é seu único negócio, que não vai muito bem das pernas. Não é a toa que a única viagem que ele consegue fazer é para o Guarujá\Acapulco, sem se livrar da gentalha. O senhor Barriga & Pesado tampouco possui uma família estruturada (nenhuma família no Chaves consegue reproduzir o padrão burguês clássico), cuidando sozinho de seu filho. Contudo, ainda que participe da precarização generalizada, ou talvez por isso mesmo, as mínimas diferenças tornam-se fundamentais e ele é freqentemente punido por ter mais dinheiro, ser o proprietário – o típico capitalista gordo – apanhando do mais pobre e sendo tapeado pelo seu Madruga em todos os episódios.
Creio que esse senso de precarização absoluta de onde emanam os valores humanistas da série – fincadas no chão da Vila – é plenamente eficaz em captar as tensões sutis decorrentes desse estado de coisas, enriquecendo aquele universo com uma visão bem pouco chapada sobre a pobreza – que assim como Chaplin, possui o talento de complexificar o olhar para os desvalidos. Ninguém ali é o pobre bondoso que só faz sofrer resignadamente – como um Cirilo ou uma Maria do Bairro – ou o pobre rancoroso maléfico. Todas as personagens têm qualidades e defeitos acentuados, cada um com sua particularidade, sendo radicalmente diferentes uns dos outros em cada detalhe, desde o vestuário até aspectos sutis de personalidade (e nesse ponto a projeção histérica de Dona Florinda é impagável). Ninguém ali é “determinado” em última instância por sua condição social: dado que todos estão em situação de grande precariedade (o contexto latino americano), são as pequenas vaidades e perversidades cotidianas que conferem sentido último às ações. Bolaños cria um microcosmo alegórico de precariedade extrema, amplamente concentrado, escapando assim do maniqueísmo tosco comum em novelas mexicanas – o bem (pobre) contra o mal (rico). A rigor, bem e mal estão diluídos por todos os personagens em suas imperfeições e patologias, cada um com sua síndrome específica, algum trauma que se revela em gestos e padrões neuróticos, tratados com humor.
Mas essa concentração alegórica, por se localizar explicitamente no campo pobre da equação, escapa também da irrelevância dos sitcons norte-americanos que se concentram na camada superior da sociedade – e que por isso funciona tão bem no centro. Bolaños se recusa a adotar a perspectiva para a qual as condições sociais nada tem que ver com a constituição das personagens. Pelo contrário, existem dois núcleos muito bem delimitados na série, os pobres e os fodidamente pobres, sendo que um vai estar o tempo todo em embate com o outro, defendendo aquele mínimo mesquinho que marca sua diferença, mais simbólica que efetiva, com toda força. Girafales, Florinda e Quico versus Chaves, Chiquinha e Seu Madruga. A lei é da selva, e todo mundo desconta suas frustrações em quem pode menos. O professor Girafales é professor de um colégio fuleiro, que esbanja capital cultural de quinta categoria a procura de uma superioridade qualquer (Bolaños claramente valoriza muito mais o conhecimento empírico do Seu Madruga). Dona Florinda consegue montar um negócio próprio (restaurante) com aquilo que herdou do falecido, mas não o suficiente para deixar a companhia da “gentalha” no cortiço. Toda sua frustração social é transformada em um conjunto histérico: ela literalmente impede seu “tesouro” de crescer, por ser incapaz de superar o trauma da morte de seu marido marinheiro, e jamais conseguirá passar do cafezinho em sua relação com o professor, impedindo que este cumpra uma função paterna de fato. Auto-sabotagem, cuja válvula de escape é o ódio pela “gentalha”, e a passage a l’acte as porradas no seu Madruga. Satisfação sádica (aliás, todas as personagens têm suas perversões sádicas: dona Florinda é aquela sua vizinha pobre como você, e que vota no PSDB porque partido é linha dura com os pobres). Ela é a principal responsável pela imaturidade do filho, impossibilitado de superar seu complexo de Édipo e crescer, porque a mãe literalmente o faz ocupar o lugar do pai (com roupinha de marinheiro e tudo). Quico, por sua vez, é o próprio esnobe ridículo brilhantemente caracterizado: uma toupeira que vive se exibindo para os mais pobres, mas que usa sempre a mesma roupinha e não convive com ninguém além da gentalha. Seu Madruga – ídolo maior – é uma espécie de Macunaíma moderno. Detesta trabalhar (“o trabalho não é ruim, ruim é ter que trabalhar”), e em nada representa a ética burguesa do herói. Super-homem as avessas (daí a perfeição de suas personagens no Chapolin – o Diabo, Super Sam [melhor caricatura ever de um herói], Tripa-Seca, Alma Negra). No entanto, é de longe a personagem que mais trabalha, o tempo todo e em tudo o que aparece, se virando como pode para sustentar uma filha sem mãe. Sua alegada “preguiça” não é apenas um traço ético, mas algo inscrito na própria precariedade daquela sociedade que não oferece possibilidades de cidadania.
A simpatia de Bolaños com a periferia, entretanto, fica mais evidente na personagem que reservou para ele próprio, e que dá nome ao seriado. Um menino que foi abandonado dentro de um barril (ou fica lá por vontade própria, nunca saberemos), órfão, absolutamente esperto, mas também ingênuo e atrapalhado, que sofre muito ao longo dos episódios, mas é adorado por seu carisma e autenticidade – inspiração clara em um dos ídolos declarados do diretor: Carlitos. Essa identificação autêntica com os marginais e a periferia (e que não é, portanto, nem uma relação de falsa simpatia (populismo de esquerda), nem de superioridade arrogante (reacionarismo de direita) – e que é um desses casos em que a arte supera a ideologia pessoal de seu criador, seja ela qual for) é a grande qualidade do seriado, que faz com que o Chaves se diferencie de seus pares, universalizando-se.
(Não bastasse a qualidade de Chaves, que constrói seu significado maior a partir de uma compreensão em profundidade da precariedade periférica, Chapolin também é um achado estético de primeira linha. Pois os pressupostos da sociedade burguesa – que casam tão bem com o do your self norte americano – ponto de sustentação ideológica clássico dos heróis yanques – não se encaixam precisamente nos países de periferia. Algo está sempre deslocado, ainda que permaneça enquanto norma. A figura do herói por aqui tem necessariamente algo de ridículo, de anti-herói. Nosso padrão de heroísmo é macunaímico (ao menos até o capitão Nascimento, que inaugura algo inédito que tem tudo a ver com o avança conservador no campo cultural brasileiro). Todos os grandes autores periféricos têm essa percepção, de que o deslocamento do heroísmo para o padrão latino gera uma defasagem que é ridícula. E eis que surge o Chapolin, espécie de gafanhoto covarde, malandro, que resolve (ou não) tudo na base da sorte. Mas o que é ainda mais importante é que Chapolin é, verdadeiramente, um autêntico herói. A paródia explícita ao modelo heróico norte-americano não é a personagem de Bolaños, mas o sensacional Super Sam, um super-man fracote cujo bordão é “Time is Money”. Ao se contrapor a esse avesso revelador do super-man – o modelo máximo de herói americano altruísta visto da perspectiva periférica – o Polegar Vermelho adquire algo de grandeza tragicômica).
Por essa construção precisa e muito bem acabada de um ponto de vista da periferia – indo muito além de uma simples questão de memória afetiva – que só aparece em grandes momentos do humor mundial, é que o Chaves aparece disparado no topo da lista das melhores séries – ou das séries mais amadas – no Brasil. Poucos seriados demonstraram tanto amor – identificação profunda e radical – pela periferia latino-americana. E amor com amor se paga.
Muito obrigado, Roberto Bolaños, por sua genialidade.