Crítica lugar de fala
Antonio Candido costumava dizer que o estudo do poema envolve a análise de suas tensões. De um jeito ou de outro, essa premissa segue valendo para além das divergências entre modelos de análise: materialismo dialético, desconstrução, formalismos. A meu ver, esse princípio serve como parâmetro metodológico para interpretação de todos os gêneros estéticos, e por isso é uma excelente premissa para análise de canções.
Entretanto, atualmente nas redes sociais vemos avançar um modelo de crítica que, na falta de um termo melhor, podemos definir como crítica lugar de fala. Esse modelo em geral ignora as tensões de seu objeto e parte diretamente para a desqualificação do lugar de fala do autor, em defesa de alguma minoria. Esse modelo é bem próprio das redes sociais, pois obedece a seu parâmetro de organização por logaritmos e likes e, ao contrário do que se pensa, tem pouco a ver com modelos de análise pós-estruturalista – o rigor das análises de Derrida e Judith Butler, por exemplo, são em tudo oposto a falta de profundidade dessas análises.
O objeto da análise nesses casos funciona como puro pretexto para x críticx falar do assunto que de fato lhe interessa. Trata-se de uma forma de se relacionar com os textos\contextos que não passa pelo crivo da realidade, e que por isso se torna incapaz de interpretá-la, reproduzindo eternamente seus próprios pressupostos (que no fundo não são “seus”, nem “próprios”). No caso da última polêmica sobre a canção “Tua Cantiga”, do próximo disco de Chico Buarque esse movimento ficou, mais uma vez, evidente. Particularmente acredito que a canção não endossa a perspectiva do eu-lírico, justamente pela presença de inúmeros elementos de tensão que expõem suas fragilidades e canalhices, reproduzindo um movimento que é absolutamente comum nas canções do autor: uma cena aparentemente idílica, ou romântica, que na verdade é cheia de tensão dramática. Quando funciona, a estratégia pode fazer com que os versos inclusive passem a significar o oposto do que aparentam em sua superfície (como no exemplo de “Olhos nos Olhos”, em que se adivinha uma dor profunda por trás de versos tão aparentemente afirmativos quanto “Olhos nos olhos, quero ver o que você diz \Quero ver como suporta me ver tão feliz”. Tensão essa que advém, dentre outras coisas, do horizonte machista na qual a personagem está imersa subjetivamente). A força das canções de Chico Buarque sempre esteve em sua capacidade de apresentar essas tensões em grau máximo, problematizando lugares comuns, e não na resolução dos problemas das personagens, que são sociais. Independente de gostarmos ou não das personagens, concordarmos ou não com sua representação (alguém é favorável ao sujeito canalha de Tanto Amar e sua obsessão com o “olhar esquisito” da moça vesga? A canção é deliberadamente bonitinha pra piorar as coisas).
(agora, o quanto essa perspectiva é limitada por questões sociais e estéticas, já é outra questão. De fato, é ótimo que finalmente estejamos deixando de lado o lugar comum de que Chico Buarque retrata a alma feminina como ninguém. Sempre pensei que sua perspectiva, independente do gênero da personagem, é notavelmente marcada pelo ponto de vista do homem. E é perfeitamente possível reconhecer isso em suas canções. O que não significa que as canções sejam a pura reprodução de uma ideologia machista sem complexidade. Mas esse olhar sempre presente, embora nem sempre nomeado, é mais importante do que na canções de Caetano Veloso, por exemplo).
Tenho, contudo, amigas e amigos que discordam, e pensam que a canção concorda sim, em alguma medida, com a perspectiva da personagem. O que é um pressuposto bastante razoável, uma vez que existem vários exemplos de perspectiva machista na obra do Chico. De todo modo, discordando-se ou não, o primeiro passo deveria ser justamente esse: saber o que o sujeito diz na canção. Interpretá-la, para só então julgar a partir do que foi efetivamente dito. Só depois de saber o que está dito eu posso avaliar se o conteúdo é ou não machista, e a forma como se organiza sua estrutura. Mas o que tem acontecido hoje na critica lugar de fala é justamente o contrário. Primeiro eu armo todo o meu modelo de interpretação, daí vou para o mundo caçando o que confirma e o que se opõe, santos e demônios. Por isso o tom moralista que necessariamente assume, pois se trata de um aparelho retórico muito mais próximo da religião do que da ciência. Com isso, o modelo narrativo não precisa passar pelo teste de realidade – a tal da pós-verdade. É só escolher um verso da música que, deslocado, confirma meu argumento, e sair criando personagens (ficcionais, porque tem a ver com minha narrativa e não com o que a música ou o mundo de fato mostram). Pronto. Chico e sua música viram mero exemplos de tudo aquilo que eu já sabia muito antes de ouvir.
Todo debate posterior segue assim girando em falso, porque a argumentação não foi confirmada pela análise do objeto (e sim, estou descaradamente defendendo a enorme importância das aulas de português e literatura). Dessa forma, não ocorre o diálogo, pois não existe processo de troca. Quem acha que deve-se falar contra o machismo vai apoiar o texto contra o Chico. Quem acha que a análise não se sustenta, vai tirar onda de sua fragilidade. Críticos de direita que não suportam o esquerdismo do Chico vão usar o argumento das feministas contra o seu machismo, enquanto que os anti-feministas irão apontar a fragilidade do vínculo e o moralismo de fundo da análise que condena o adultério com argumentos do século XIX. Tudo permanece no reino da opinião e da convicção pessoal, justamente porque prescindiu da análise. Cada um pregando para seu próprio grupo de convertidos.
Ai que saudades da Amélia
Dito isso, não vou comentar a música, que achei boa, mas que me interessa menos que outras coisas, inclusive porque é mais do mesmo novo\velho Chico, no que tem de bom e ruim: uma história aparentemente pungente e delicada, cantada com delicadeza\melancolia\cansaço, mas que vista de perto é bem tensa, repleta de dor (dissimulada), infelicidade, violência e canalhice; um arranjo que capricha nos detalhes, sobretudo o piano que cria uma linha harmônica que reforça esse tom de dissonante tranquilidade; a crença-descrença no poder da própria canção, que sobrevive a morte, sem que isso seja resposta pra nada. Enfim, aquele bom e velho modelo de MPB que torna todos os elementos de uma canção significantes e relacionados entre si. Pra quem quiser, já tem textão sobre isso, do Bráulio Tavares.
Também não vou comentar as críticas feitas à pulada de cerca imaginada na canção (ela nem acontece), porque acho que já passamos dessa fase, pelo menos desde o processo contra Flaubert e o seu Madame Bovary – ainda que a ala da esquerda moralista se esforce bastante para ressuscitar esse tipo de picuinha (e não quer ser zuada). Também já tem textão sobre isso na Net.
Ao invés disso, quero retornar ao argumento do Antônio Candido e propor um exercício de leitura de outra canção, essa sim, polêmica de verdade, para tentar mostrar o que se pode conseguir com a análise das tensões. Por isso queria tratar daquela que é considerada o protótipo da canção machista por excelência, aquela que nove entre dez pessoas citam quando pensam em música machista: Ai que saudades da Amélia. Não vamos propor uma análise exaustiva, mas apenas apontar alguns dos pontos de tensão que podem tornar a crítica mais complexa.
A letra traz a perspectiva de um homem que compara a sua atual companheira com a antiga, de forma bem canalha, numa visível tentativa de rebaixamento da atual por meio do “elogio” a “passividade” da antiga parceira. Toda a canção é atravessada pelo machismo da perspectiva, e tanto o elogio da passividade da Amélia quanto a desqualificação das atitudes da moça não nomeada como “vaidade” e “consumismo” reforçam clichês cujo objetivo é reforçar o poder do ponto de vista do macho. O interessante é que a estratégia de auto-valorização passa em grande medida pelo vitimismo (“não vê que eu sou um pobre rapaz”). Estamos diante, pois, da bem conhecida lógica do “white people problems”, classe média sofre, racismo reverso, etc. Se fosse escrita hoje, provavelmente teria uma parte falando que o feminismo não quer a igualdade, e sim acabar com os homens. De todo modo, tudo na canção é pensado para desqualificar as duas mulheres e reforçar, assim, a supremacia do macho.
Aliás, algumas tentativas de revisionismo à direita da interpretação dessa música apontam, não sem certa razão, que em nenhum momento Amélia é colocada como dona de casa (diferentemente do que acontece com Emília, de Wilson Batista, muito mais explícita e direta). Tais interpretações buscam “amenizar” a questão do machismo, falando em elogio ao companheirismo, ou destacando que sua principal crítica é ao consumismo (Mário Lago era do PC). De fato, a descrição que se faz da Amélia não é do tipo direto ou realista. Ela é construída quase como um arquétipo, mas o seu valor principal não é, de forma alguma o companheirismo, e sim a sua completa passividade. O machismo da canção está, entre outras coisas, na total subordinação das imagens das mulheres ao velho complexo masculino de Santa ou Puta. Amélia é depreciada a cada linha de seu elogio: transformação em coisa (“Aquilo” que era mulher, ao invés de “aquela”), passividade (achava bonito não ter o que comer), imagem materna (“Meu filho, o que se há de fazer”). Não é só ausência de vaidade, e sim de todo amor próprio e sexualidade.
Dito isso, e reconhecendo o machismo mais do que evidente da canção, é interessante partir para o reconhecimento dos seus elementos de tensão. Quais outros elementos compõem esse ponto de vista? Em primeiro lugar, a figura desse homem que organiza o discurso. Deixando um pouco de lado o que é dito sobre a mulher, reparemos naquilo que o sujeito mostra de si mesmo. Desde o primeiro verso a canção é construída como um grande lamento vitimista, a apresentação de um sujeito desesperado por atenção, que se coloca como vítima. O poder desse sujeito é demonstrado de forma radicalmente distinta daqueles sambas claramente ofensivos como “Boca sem dente” ou a terrível “Eu não quero mais”, que sugere que se jogue a mulher no lixo. O eu-lírico dessa canção está o tempo todo, desde o primeiro até o último verso, pedindo colo e atenção (“olha o que essa mulher fez comigo”). A canção se esforça por construir o sujeito enquanto vítima, o que reduplica sua perversidade, pois além do rebaixamento das mulheres, conta com a captura da simpatia do ouvinte para sua situação de fragilidade, um movimento que é particularmente canalha. O eu lírico utiliza-se inclusive de sua posição de classe como instrumento de chantagem (o que coloca um problema a mais para a esquerda moralista que opera com vilões e mocinhos bem determinados). O eu-lírico se esforça por não apresenta sua violência enquanto tal, seja pelo “elogio” a Amélia, seja por sua construção como vítima pobre, ou pobre vítima.
De todo modo, estamos diante de um dos elementos de tensão da canção, pois o poder do macho é construído a partir de estratégias não de força, mas de fragilidade, o que torna o quadro mais complexo (e perverso). Longe de negar o machismo, a fragilidade do macho faz parte de sua composição, o que torna mais complexo a visão da estrutura do poder. Pode-se agora avançar na direção das críticas queer, por exemplo, demonstrando a relação do machismo com uma fragilidade psíquica fundamental (pois os gêneros em si sequer existem), que usa toda violência da estrutura social para preservar esse significante vazio. E reconhecer essa fragilidade não torna a posição de poder menos violenta, apenas reconhece a necessidade da passagem ao ato lacaniana, de modo a suprir essa falência do Eu com a violência ao outro, que confirma a Verdade de minha posição com a sua submissão real. Como mostra Deleuze, as figuras de poder kafkianas são frequentemente ridículas, quase cômicas, e isso só as torna ainda mais terríveis, mais difíceis de serem desconstruídas e derrubadas (é sempre bom recordar que os dizerem na entrada de Aushwitz tinha a forma de uma piada, o que torna tudo ainda mais terrível: “o trabalho liberta”).
Além disso, o trabalho de dissimulação é ainda reforçado pela construção melódica. A melodia da primeira parte tem um caráter ascendente (do mais grave para o mais agudo) que se reforça a cada verso, indicando um progressivo aumento de intensidade passional da canção. Ao mesmo tempo, não existem grandes saltos melódicos, o que demonstra certo controle racional do sujeito, afinal, trata-se da apresentação de argumentos. A melodia dessa primeira parte, ao mesmo tempo que reforça o sofrimento do pobre rapaz com sua melodia ascendente (passionalização), reafirma a racionalidade de seus argumentos (não é um sujeito tomado pela loucura passional). Por trás de tudo, evidentemente, a presença rítmica do samba presente na tematização dos versos.
Na segunda parte, que trata da Amélia, acontece uma inversão total dessa trajetória melódica. A estrofe começa em seu ponto mais alto (“As vezes passava fome ao meu lado”), reforçando o sofrimento, e traça uma trajetória descendente. A solução melódica é brilhante, pois reforça a sensação de tomada de controle, de tranquilização do eu-lírico, que é resultado da presença de Amélia, cuja “voz” comparece no momento em que a melodia está mais “tranquila” (seu ponto mais baixo), no final da estrofe (“Meu filho, o que se há de fazer”). A tranquilidade que Amélia traz para o sujeito é construída também melodicamente, para explodir em saudade no refrão. A melodia da canção constrói a trajetória sentimental do eu-lírico, reforçando a “verdade” de seus argumentos.
Existe machismo em Ai que saudade da Amélia? Sim, é sua base de constituição. Ela constrói uma visão monolítica do macho agressivo e violento? Não, o machismo deriva em grande parte de um ponto de vista que esforça por mostrar a sua fragilidade, que é inclusive social. Isso significa que a canção seja menos machista? Não. Só torna essa estrutura mais complexa, mostrando como ele pode vir articulado a diversas dimensões contrastantes.
Contudo, mesmo nesse caso em que tencionamos a perspectiva do eu-lírico para melhor definir sua perspectiva, estamos ainda presos dentro de seus limites. Existe outro elemento de tensão ainda mais importante, na medida em que confronta diretamente as intensões explícitas do texto. Pois é possível reconhecer uma história de emancipação da mulher, contra a qual a canção reage. Essa perspectiva não se constrói explicitamente como um ponto de vista assumido na canção, mas adivinha-se em sua dimensão não explícita e suplementar (Derrida nos ajude!). Pois é isso que se adivinha na passagem da “mulher de verdade” para aquela que “não sabe o que é ter consciência” (de seu lugar de submissão?), transição da Amélia submissa para outra que não se limita ao lugar pressuposto pelo eu-lírico. A despeito do juízo moral do eu-lirico a contraposição entre as duas mulheres permite entrever movimento – a condição da mulher já não é a mesma.
É contra esse processo de “emancipação” que a letra toda é construída. É claro que não é possível determinar a real dimensão desse movimento, porque o eu-lírico o tempo todo o reduz a mero impulso consumista, reativando outro estereótipo comum da mulher frívola que só pensa em fazer compras. Não estamos dizendo que a mulher não nomeada na canção é uma feminista (não existem elementos que o comprovem). Mas é inegável que existe um movimento aí que incomoda profundamente o sujeito, a ponto dele construir toda a canção como uma forma de barrar esse processo, que escapa a seu controle real (daí a tentativa de enquadrá-lo simbolicamente em uma nova forma de controle simbólico).
Notem o quanto existe de tensão e dinamismo no interior de uma canção aparentemente estática. Poder do macho afirmado a partir de sua fragilidade. Dinamismo feminino que tenciona, sem vir a tona, a representação estática no interior da consciência do eu-lírico. Interpretada assim, a partir de suas tensões, não se nega o machismo da canção em nenhum momento e, além disso, se delimita de forma mais consistente os demais elementos de sua estrutura, o que é fundamental inclusive para se armar estratégias de luta sem menosprezar o inimigo ou superestimar sua própria força.
(deixando a dimensão política atravessar diretamente esse texto, cabe perguntar se não seria mais produtivo para a luta pintar esse sujeito como um monstro machista agressivo, ao invés de destacar sua fragilidade. Mostrar sua fragilidade não é uma forma de abrir uma brecha para argumentos que sustentam que, afinal, ele não é tão ruim (e machista) assim? Acredito que seja justamente o contrário. Ao reconhecer essa fragilidade que efetivamente está na canção, antes do discurso conservador se apropriar da interpretação, conseguimos compreender sua funcionalidade no interior da estrutura machista, incorporando essa dimensão ao sistema que procuramos definir, de forma mais completa).
Chico Lacrador de Hollanda
De fato, não é de meu interesse fazer uma análise de Tua Cantiga. Mas esse texto aqui, que compara a nova música do Chico com K.O. do Pabllo Vittar, chamou de cara minha atenção, não por sua qualidade, mas pela quantidade de clichês, desentendimentos e obscurantismo presentes em quase todo parágrafo, e que fazem dele um caso bem representativo. O autor se esforça por justificar para si e para os outros porque ele prefere a música do Pabllo Vittar, apesar de considera-la “medíocre” – opinião que ele também se esforça, muito, mas muito mesmo, pra demonstrar. Trata-se de um panfleto, sem maiores pretensões além de polemizar, e não vale a pena como texto em si (nada é dito além da repetição de velhos clichês). Mas é interessante na medida em que mobiliza uma série de argumentos que volta e meia surgem para desqualificar a obra do Chico Buarque. É interessante, pois, retomar alguns deles, especialmente pelo que revelam de um movimento que tem se tornado hegemônico em discussões, e não apenas nas redes sociais: mobilizar certas estratégias aparentemente progressistas em um conteúdo no geral altamente conservador e ressentido. Nesse sentido, o que nos interessa é a seguinte questão: como um texto que defende o gosto musical dos mais pobres e a representatividade trans na canção pode ser conservador? A única resposta possível é: é muito mais fácil do que parece.
Levantemos então alguns dos argumentos do autor e que são frequentes nas críticas mas recorrentes a Chico Buarque.
Chico Buarque está ultrapassado (ou “o véio já morreu, antes ele do que eu”)
De longe, o melhor comentário sobre isso foi feito pelo próprio Chico, em um vídeo absolutamente impecável e hilário.
Em certo sentido, existe algo de verdadeiro nessa sentença de morte que se repete todo ano. Infelizmente, essa morte não é forte o suficiente para impedir que surjam uma enxurrada de textões a cada single que o veio lança, como se o bicho não morresse direito, ou completamente, indicando a contragosto que algo ali persiste. O primeiro a reconhecer isso, aliás, foi o próprio Chico, em uma entrevista que causou grande repercussão (a tal da morte da canção), onde afirmava que o modelo de canção que a sua geração apresentou teria chegado ao fim com a emergência do rap. Chega a ser engraçado as pessoas “redescobrindo” a morte desse tipo de canção todo ano, como se fosse uma grande novidade, mesmo porque Chico Buarque faz questão de esfregar isso na nossa cara em diversas das suas músicas mais recentes. O cara compõe valsa, pelamordedeus! Valsa! Ele efetivamente FAZ música de gente morta. O que mais ele tem que fazer, compor uma ópera? Ops, isso também já rolou… Esse é seu tema, e sua matéria de reflexão estética.
Aliás, não foi só esse modelo de canção que morreu sem ser enterrado direito. Junto com ela foi-se todo um projeto de formação do país. O projeto era uma bosta e nunca se realizou de fato, a despeito de seus refúgios de beleza e poesia (Pelé, Garrincha, Cartola, Luis Gonzaga, João Gilberto, o próprio Chico), mas o que surge em seu lugar é motivo de celebração? A educação pública no Brasil nunca prestou efetivamente (enquanto projeto coletivo do país, tirando experiências pontuais como as de Paulo Freire), mas isso é motivo para celebrarmos o atual desmonte do quase nada que poderíamos talvez vir a ter? Devemos nos contentar com essas migalhas (não a música de Pabllo Vittar, mas o horizonte ideológico desse tipo de crítica) que, no fim das contas, estão prestes a nos atirar no colo de um Bolsonaro da vida? Parece ser essa a conclusão progressista de certos críticos radicais…
O que interessa não é tanto reconhecer essa morte, e sim porque o cadáver não é sepultado de vez, qual a atitude que se toma diante dela e, sobretudo, o que foi colocado em seu lugar. Pois se a atitude passadista de “no meu tempo é que era bom” obscurece certas contradições que nos conduzem aos horrores do presente, a celebração desse horror como sendo uma vitória não é menos problemática.
A música de Chico Buarque não tem relevância nenhuma para a nova geração da música brasileira (ou, “devemos respeitar Chico Buarque, afinal, ele é o nosso avô”)
(Então pra que gastar tanta tinta com o tiozão, meu Deus? Mas enfim…)
Novamente, a afirmação não é de todo falsa, pois esteticamente, o modelo de composição de Chico Buarque é muito menos presente na produção atual do que a de um Caetano Veloso, por exemplo. Aliás, existe um ótimo debate sobre isso, entre um professor da USP e um músico da cena contemporânea. A questão são as limitações desse olhar, que não tira daí nenhuma consequência reflexiva mais interessante, contentando-se em afirmar o óbvio e berrar “morre diabo”, como se isso por si representasse algum tipo de libertação. Atitude equivalente aqueles que celebram as “reformas” trabalhistas atuais simplesmente porque elas nos levam para outro lugar (longe do PêTê… fora PêTê!), sem se preocupar com que lugar é esse.
Seria o caso de se pensar, por exemplo, em outras mortes ainda mais permanentes do que a de Chico Buarque, como a trágica morte daquilo que nos anos 1990 parecia representar o futuro da canção: Marcelo D2, Skank, Fernanda Abreu, Raimundos, Marisa Monte, o Rappa… Todos apontados como a ponte para o futuro da música brasileira, e que tomaram uma baita de uma rasteira nos anos 2000. Ao invés de comemorar como uma criança mimada que descobriu que agora que está liberado gostar de brega, seria mais produtivo entender o que foi, afinal, que se perdeu nessa passagem para o novo milênio. Será, de fato, uma ampliação radical de nosso leque de opções, em total acordo com a abertura promovida pela revolução digital ou, ao contrário, uma falta generalizada de opção sustentada por um sonoro “conforme-se”? De todo modo, muita gente vem discutindo isso de forma séria e em diversos âmbitos: a antiga indústria fonográfica já era, a crença em um futuro também, a noção de representação foi para o ralo, o lastro discursivo mingou, a ideia de formação desapareceu de vista, a seleção tomou 7 a 1… etc. De um jeito ou de outro, todos estão dizendo uma coisa parecida: não adianta enterrar o Chico de novo que a merda não vai desaparecer. E sinto muito, mas curtir Pabllo Vittar não vai te salvar, e nem te tornar mais descontruído. Só vai te proporcionar baladas mais divertidas. E mesmo isso não é garantido.
Chico Buarque é endeusado e canonizado por um público intelectualóide de classe média (ou, “eu não sei fazer poesia, mas que se foda”)
É muito fácil criar uma imagem mental desse público ao qual o autor se refere, o mesmo intelectualzinho de merda, estudante de Ciências Humanas na PUC, criticado pelo aspira André Matias em Tropa de Elite I. Imediatamente pensamos em alguma figura como Pondé e seu charuto, ou Leandro Karnal e seus vinhos caros. O problema é que mesmo essas figurinhas fáceis da internet não existem – nada é mais performático que essas duas personas. Além do que, Pondé provavelmente não elogiaria Chico Buarque, e Karnal não falaria mal de Pabllo Vittar. Essa caricatura funciona como a tal “nova classe média” que ao longo do governo petista tanto se falava, mas que ninguém conseguia de fato mostrar onde é que estava, e que agora sumiu de vez sem nunca ter, de fato, aparecido.
Essa figura é relativamente fácil de ser imaginada (e detestada) pelo leitor justamente porque seu lugar de existência é o espaço da imaginação, como aquele vilão arrogante da novela das oito. É sobre isso, aliás, que o texto fala o tempo todo, é essa imagem que ele se esforça por construir, obviamente que para surgir como o mocinho da história, aquele que é contra o mainstream, a favor dos marginalizados e oprimidos. É claro que a canonização de Chico Buarque é um fato, e se não existisse o prêmio Jabuti inventariam um só para premiá-lo (como acontece com o Bob Dylan lá fora). A questão é que essa caricatura simplifica um movimento que é muito mais complexo, e que deveria ser pensado em todas as suas articulações. É preciso pensar que a celebração da diversidade também se tornou mainstream, sem que a marginalização violenta das minorias tenha deixado de existir, da mesma forma que a canonização da obra de Chico não faz com que sua música possa ser taxada imediatamente de conformista, por seu lugar de fala.
Aliás, sequer esse movimento tosco o texto realiza. Seu argumento, ainda mais ideologicamente conservador, é de que a obra de Pabllo Vitar é melhor por ser pior, pois isso significa ser mais verdadeiro, mais próximo do povo. Percebe-se o quão complicada é essa concepção de “popular” como lugar de baixo nível que deve ser celebrado a despeito de seu conteúdo.
A caricatura funciona menos ainda ao pensarmos em termos de público. Faz algum tempo que as festas da classe média alta são regadas a funk putaria, sertanejo e forró. É Wesley Safadão e Anitta que animam as baladas das classes abastadas, e não Chico Buarque ou Edu Lobo, inclusive nos cursos de Ciências Humanas. Com relação aos artistas, temos o mesmo movimento. Mesmo as alas mais experimentais da canção popular transitam sem culpa entre o dodecafonismo e o funk carioca, procurando reconhecer o valor de MC Carol e Arrigo Barnabé, estabelecendo diálogos, etc. Tais aproximações se tornaram regra, e não causam mais espanto algum. Os traços positivos que tal liberdade de trânsito podem apresentar são evidentes, mas não sem custos: fazem parte do movimento mais geral do capitalismo, desde que este desvinculou sua lógica de acumulação infinita da boa e velha moralidade burguesa, especialmente quando o comunismo deixou de ser uma ameaça real. Ou seja, não é necessário mais afirmar nenhum tipo de superioridade ética, moral ou estética para defender alguma supremacia social: basta ter dinheiro. Com isso, o papel de distinção do campo da cultura perde seu sentido, e ouvir Chico Buarque, de sintoma de refinamento, passa a ser encarado com desconfiança, como certa arrogância e afetação. Em parte, porque sua função no mercado de distinção cultural perdeu força, junto com a indústria fonográfica, que legitimava esse gosto. Inserido no empobrecido debate político atual, o debate é enquadrado nas pautas binárias de sempre, e ouvir Chico Buarque passa a ser coisa de coxinha que odeia pobre ou de petralha alienado, quando não uma mistura dos dois.
Esse tipo de argumentação tende a berrar como subversivo aquilo que é o mais confortavelmente conformista possível: agora que gostar de Chico funciona mal como moeda de distinção social, e ouvir funk na universidade é cool, fica fácil usá-lo como exemplo negativo para conquistar seguidores. Quero ver é fazer uma valsa com setenta anos e arrancar suspiros das donzelas de vinte…
De fato, Chico Buarque é um artista canonizado (ainda que menos hoje), faz “música de velho” e sua produção atual parece ter pouca relevância para as novas gerações, incluindo as da nova MPB. Contudo, o que preocupa é menos o lugar de sua produção (pois ele enfrenta essas questões de um modo, no mínimo, interessante) do que a pobreza das conclusões daqueles que se apressam em enterrá-lo todo ano, sobretudo porque esse não é um movimento isolado, e sim uma norma das discussões de internet. É quase como se tais críticas tivessem medo de que a “dificuldade” arcaica da música de Chico Buarque impedissem de curtir uma balada com Pabllo Vitar, um medo que provavelmente tem origem de classe (“como eu posso gostar de Drummond e Cinquenta Tons de Cinza, ó meu Deus!” #classemediasofre), e que nesse texto em particular se transforma em uma raiva muito mal resolvida.
Chico Buarque faz uma música complicada e cerebral, por isso é irrelevante (ou, “eis aqui esse sambinha…”)
Podemos até admitir que em certo sentido a música de Chico exige uma escuta mais atenta que retira significados mais densos, seguindo os passos de Jobim (mas isso não é de forma alguma evidente e “complexidade” é um conceito que a maioria das vezes mais atrapalha do que ajuda). Mas apenas isso não ajuda a explicar sua atual “irrelevância”. Primeiro porque historicamente tanto Chico quanto outros artistas fizeram sucesso de massa com canções “complicadas”, ou cerebrais. Segundo porque existem atualmente várias bandas e artistas com obras ainda mais difíceis que essa canção do Chico, e que fazem sucesso. O último disco da Elza Soares é bem mais cerebral, quase conceitual, e sua repercussão foi bem maior que todos os últimos trabalhos de Chico Buarque. Em terceiro lugar, essa música em particular não tem nada de “complicado”, apesar de todas as suas sutilezas: “Diário de um Detento” é cinquenta vezes mais difícil de compreender… Esse é, aliás, o grande feito da MPB: apresentar algo complexo em uma forma aparentemente simples e direta. Eis aqui esse sambinha…
Gosto popular e gosto especializado nunca bateram, via de regra (ou, “dizer que Chico Buarque é um gênio faz parte das regras para entrar no clubinho da esquerda caviar”).
Trata-se da mesma caricatura citada acima, e que finge ignorar que hoje em dia ser descolado é curtir funk e Inês Brasil. Além disso, se existe um campo onde essa segregação cultural foi subvertida em algum momento, foi justamente na música popular. Dorival Caymmi, Noel, Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Racionais, Caetano, Tim Maia, Jorge Bem, são todos sucessos tanto de crítica quanto de público. E o próprio Chico chegou a rivalizar com Roberto Carlos em vendas na época dos festivais. É claro que existem as distinções, que não são poucas: Wesley Safadão não vai receber a mesma consagração da crítica que Liniker, e não necessariamente por questões de qualidade musical (nenhum dos dois me agrada). Mas a música nesse sentido ainda está muito mais próxima do futebol do que da literatura. Gênios da literatura como Machado e Guimarães fazem parte de todo currículo escolar e universitário, mais não são lidos. Gênios da música como Luiz Gonzaga e Fundo de Quintal são reverenciados pelo gosto popular e pela crítica especializada. As distinções existem, em parte fundadas pela Bossa Nova, mas são muito mais porosas e fluídas, nas entranhas do mercado, do que na chamada Alta Cultura.
Pablo Vittar faz música descartável, mas é o que o povo quer e precisa, enquanto Chico Buarque é trilha sonora de clube de golfe.
Nesse caso, cabe a citação de um trecho mais longo:
“A música brasileira passa pela invasão mais genuína de sua história. Por origem, a bossa nova e a MPB foram sempre aristocratas. Foram ensimesmadas, de guetos com a suposta pretensão da inteligência exclusiva. Excludentes, preconceituosas e arrogantes. O funk é aberto, permissivo e desbundado. Uma bosta de música, artisticamente falando. Mas é brasileira, real, direta, objetiva. A poesia de Chico é linda, lírica e bonita. Só é fechada, hermética, intimista e complicada demais. Chico se tornou trilha de reunião de clube de golfe com charutos, conhaques e pulôvers nos ombros. Vittar é churrasco na laje, tiozão fazendo piada, sol à pino e gritaria. É povo”.
Tudo nesse trecho é complicado, para não dizer simplesmente equivocado, e ideologicamente carregado, mas é um tipo de argumento absolutamente comum. A imagem romantizada da cultura popular, valorizado por si, como se não tivesse problemas ou contradições. Desaparecem a violência e o machismo do funk, “genuinamente” popular. Desaparecem também as contradições entre o que representa Pablo Vittar e o fato do Brasil ser um dos países que mais mata homossexuais no mundo. Como ele faz sucesso popular, deixamos de ser um país homofóbico, como aqueles que diziam que por celebrarmos a mestiçagem no carnaval, não poderíamos ser um país racista.
O movimento ideológico é ainda mais impressionante na medida em que recupera integralmente certa linha de argumentação do marxismo mais rasteiro, que os próprios marxistas não aguentam mais, e cuja imagem mais acabada no campo da música popular é a de José Ramos Tinhorão. Aliás, se Tinhorão fosse de direita, certamente já teria sido reabilitado, mas como ser marxista hoje pega mais mal do que acreditar no Olavo de Carvalho, estão deixando o homem em paz. Mas é do mesmo tipo de essencialismo que estamos falando, não mais socialista, é certo, mas um essencialismo multicultural. É bom porque é do povo, mesmo que seja ruim. Porque o povo, nesse caso, é outra invenção imaginária a qual somente o crítico tem a chave de acesso. Rap bom. MPB ruim. E o Jorge Ben? Não interessa.
Além disso, mal se disfarça no texto a arrogância oculta por trás dessa “abertura” de espírito, que preserva o seu próprio bom gosto (“reconheço que Pabllo, ou o funk, são uma bosta de música”) enquanto “autoriza” o “mal gosto” popular, ao mesmo tempo que se permite “curtir” o momento brega, pagando de liberal pró-trans popular. Desvinculado de um comprometimento mais sério com o material estético, ou com uma causa política concreta (no caso, LGBT), o crítico pode assumir a posição que lhe for mais conveniente, por mais contraditória que seja, sem assumir nenhum tipo de risco derivado de um comprometimento mais sério e consequente. Afinal, tudo é pose. No limite, não se trata aqui de Chico Buarque ou Pablo Vittar, e sim de um processo de transferência de certa culpa de classe: eu quero gostar mais de Pablo do que de Chico, porque isso é cool, mas como no fundo ainda considero esse gosto um pecado (acho ruim, mas tenho que achar bom, porque isso me aproxima mais dos pobres), preciso demonizar o Chico e tudo aquilo que ele ainda representa em mim. Com isso, transfiro o problema para a obra do Chico, como se não fosse um problema meu, afinal, eu “gosto” mais do Pablo Vittar. Quanta firula parceiro….
Apesar do texto reforçar o tempo todo que quer fugir do mainstream, que comete heresias, que subverte as normas, etc., nada poderia ser mais conservador do que essa linha de argumentação que legitima o filme de terror de baixo orçamento que vivemos como espaço de subversão da ordem. Notem que não estou falando do sucesso popular de Pablo, que é interessante, sobretudo por ser efetivamente popular (o que o diferencia de um Johnny Hooker ou Liniker, de consumo bem mais restrito), mas do modelo de argumentação. A estratégia já é nossa velha conhecida, e reúne didaticamente vários elementos de arrecadação de likes: o tom inflamado para ocultar a fragilidade da argumentação, chamando a atenção dentro da timeline; a afirmação do conservadorismo como algo subversivo (música ruim é bom!); a criação de uma caricatura do inimigo a ser combatido para ganhar adesão em massa (um Buarque de Hollanda rico de olhos verdes tomador de champanhe em uma cobertura carioca de Manoel Carlos); estabelecimento do lugar de fala como lugar de verdade que neutraliza todas as relações complexas entre arte e vida. Evidentemente que, como em todo processo de transferência, o problema não se resolve, e termina por retornar como sintoma: a relação com a cultura popular aparece como modinha fake, e o ódio ao Chico Buarque é claramente um caso de amor e projeção frustrada. Todo mundo é capaz de perceber a farsa por trás do berreiro hater. Ampliando-se para o conjunto de estratégias da esquerda, revela toda sua fragilidade e expressa os impasses que estamos vivenciando.