Como diria um analista amigo meu: “pra que gastar tanto latim apontando racismo no novo clipe da Mallu Magalhães? Vai atingir a quem? Tu não tem nada mais urgente pra fazer?”. Depois de dois dias seguidos assistindo ao clipe, essa frase bastante realista caiu com a sutileza de uma bomba. Fiquei deprimido, pensando seriamente em não publicar, ou só fazer um comentário curto e repostar um texto antigo. Mas, quando terminei de escrever, percebi que o texto não era mais só sobre Mallu Magalhães. Era sobre a classe média beijaço, bundaço, patinete, abraça-árvore, gratiluz, Esquenta, cirandeira. Sobre seus limites e sua impotência diante de aspectos urgentes como racismo e luta de classes. Mas, sobretudo, o texto é sobre o que realmente importa destacar no clipe: o que ele é capaz de revelar de um modo particular de funcionamento do racismo brasileiro. É, sobretudo, por expor essa lógica claramente, que o clipe se torna interessante.
I
Depois de um bom tempo Mallu Magalhães volta a aparecer com um novo clipe, “Você não presta”, em que protagoniza junto a um corpo de bailarinos negros. Verdade seja dita, musicalmente as coisas melhoraram bastante em seu som, sobretudo com relação aos arranjos, que deixam o samba muito mais encorpado. Sinal que seu novo disco pode vir a ser um dos melhores de sua carreira. Contudo, essa não vai ser uma crítica musical, e sim sobre o conteúdo ideológico do clipe que, ao contrário do que podia se esperar, não foi celebrado como um posicionamento politizado da artista diante da questão racial. Ao contrário, criou-se um justificado mal estar nas redes sociais, que levou a artista a publicar um pedido de desculpas.
Na época do lançamento, Mallu Magalhães afirmou que seu desejo era fazer um clipe mais selvagem, saindo de sua “zona de conforto” (leia-se: branca de classe alta que vive na Europa). O resultado, contudo, mostra claramente não o racismo da artista, mas os limites da própria lógica interna da MPB neo-indie, que obviamente se estende a todo um setor social mais amplo. Pois é próprio do gênero o conforto e a autossatisfação com sua própria posição de classe (no caso, atravessado por uma inequívoca dimensão racial), celebrado como reino da delicadeza, felicidade e bem estar. Contudo, ao inserir um corpo de bailarinos negros no interior dessa lógica, a contradição entre os dois campos (que pode passar despercebida em um contexto menos aberto, como no interior de um apartamento, ou em uma festa no condomínio) torna-se explícita.
Pode-se imaginar as boas intenções da moça ao procurar dar destaque a um coletivo negro em seu mais recente trabalho. Mas não devemos nos esquecer que as intenções da MPB neo-indie são SEMPRE as melhores possíveis, posto que organizam-se a partir de um mundo sem culpa. Ao propor a construção de um clipe “inclusivo” e “empoderado”, a distância sócio racial constitutiva do gênero volta pela porta dos fundos, saltando aos olhos de quem quiser ver.
II
Esse retorno do reprimido, entretanto, não se dá de maneira simples, apesar de ser imediatamente percebido ou, ao menos, sentido como um incômodo. De todo modo, ele não se reduz ao fato de Mallu Magalhães aparecer como protagonista do clipe (o que justificaria a diferença de ênfase e destaque dado a ela em relação aos coadjuvantes). Pois mesmo quando essa distância é rompida, nos momentos em que ela interage mais diretamente com os bailarinos, ou quando os próprios bailarinos seguem a lógica neo-indie (andando, melancólicos, de patinete ou bicicletinha), a delimitação de lugares diferenciais não se resolve, por conta mesmo da estrutura do clipe, que aparece como um apanhado de imagens e cenas cujo peso histórico paira fantasmagoricamente no ar sem nunca ser assumido integralmente, causando um descompasso entre as intenções celebratórias de inclusão na festa neo-indie, e as marcas da distância e dos papéis atribuídos.
São muitas as passagens do clipe que reforçam assimetrias: desde as diferenças de figurino até uma série de “deslizes” bem problemáticos que se sucedem do inicio ao fim: aos 3:09 minutos, por exemplo, Mallu canta “só não convido você, porque você não presta”, e a cena corta para corpos negros atrás das grades. E em diversos outros momentos vemos saltar da tela um conjunto de sugestões visuais, no mínimo, incômodas: cenas em que os negros aparecem de bicicleta atrás do caminhão que leva, sozinha, a protagonista branca; cenas em que um grupo de negros sem voz ouvem Mallu Magalhães cantando um… samba, etc. Mas talvez a imagem síntese do clipe esteja em seu final: o grupo de negros bailarinos, agora com roupas do dia a dia (após o trabalho de gravação do clipe?), são mostrados em um lugar que parece com um subsolo, enquanto Mallu surge enquadrada, sozinha, poderosa, no andar de cima. Depois da festa (ou trabalho?), tudo volta a normalidade, com cada qual no seu devido patamar simbólico e social.
Esse modo de organização acaba contaminando inclusive os aspectos que a princípio não tem diretamente a ver com esse conjunto de questões. Por exemplo, o fato da artista aparecer à frente do corpo de bailarinos, sem interagir com ele, foi interpretado como sendo mais uma prova de racismo. Entretanto, é preciso lembrar que essa performance é recorrente em alguns de seus clipes, quase como um protocolo da postura neo-indie de alheamento feliz, com aquela atitude típica de “viver satisfeito ao reconhecer os limites delicados de seu mundo”. Basta lembrarmos que no clipe “Velha e Louca”, Mallu Magalhães também mal interage com a banda. Contudo, o aspecto problemático desse alheamento vem a tona quando sobreposto a um impulso de representatividade que reforça o distanciamento exposto por todo o clipe. Trata-se de uma aproximação que, no fundo, não aproxima, reforçando mecanismos de segregação.
A quantidade de “bolas fora” do clipe impressiona e, pelo grau de recorrência, não deixa de evidenciar um sistema.
III
Boa parte da dificuldade em se analisar as relações de distanciamento marcadas pelo clipe é que, muito provavelmente, essa não foi uma intenção deliberada de seus autores. Muito menos trata-se de um desejo explícito na canção, que não trata de questões raciais em nenhum momento. E, ao contrário do que pode parecer, essa não é uma questão menor (no sentido de que as intenções importam menos que os resultados – “não interessa se foi pensado ou não, o que interessa é que houve racismo”). De fato, acredito que é precisamente por meio dessa não intencionalidade, desse aspecto de “deslize”, que se realiza um dos principais fundamentos do racismo brasileiro. É desse campo da intencionalidade que deriva a complexidade da questão, pois qualquer um que contra argumentar por esse caminho, dizendo que o clipe não contém intenções racistas, não vai estar de todo errado. De fato, promover um clipe inclusivo parece ter sido um dos objetivos de seus produtores.
O problema, portanto, não está no campo das intenções, e sim no complexo estético-ideológico. A questão consiste justamente no fato de tal sucessão perversa de “deslizes” comparecer no clipe de forma naturalizada, não intencional, e sem trazer absolutamente nenhuma consequência para sua lógica de organização, ideologicamente montada a partir do andar de cima. Aqui é preciso extrair todas as consequências do fato de que câmera e montagem nunca são neutras. Pois não somente o clipe privilegia todo o tempo a imagem de Mallu Magalhães, como todo seu universo simbólico é estruturado a partir de um ponto de vista determinado. Um ponto de vista para o qual não só a série de sugestões e imagens problemáticas não causa nenhum incômodo, como se torna tão recorrente que basicamente cria um sistema, que se repete ao longo de todo clipe.
Devemos, portanto, levar a sério a restrição daqueles que afirmam que o racismo do clipe não foi intencional e nem diretamente proposto, e que boa parte dele se dá mais ou menos “sem intenção”, “sem querer”, quase como um deslize não intencional, ou uma consequência não prevista. Tudo se passa como se o racismo, que atravessa o sistema de imagens mobilizadas pelo clipe, não fosse estruturado enquanto tal, pairando como suplemento obsceno que todos reconhecem, embora não consigam exatamente capturar. Voltemos ao exemplo dos planos em que Mallu Magalhães aparece em destaque à frente dos bailarinos negros. Como vimos, não é possível sustentar com toda clareza que a cena foi estruturada para reforçar estereótipos racistas, pois faz parte de um mise em scène típico da artista. A relação direta entre intenção e gesto, ou entre causa e efeito, não é transparente.
Não basta, pois, reconhecer e apontar a existência do racismo no clipe. É necessário determinar a funcionalidade desse seu modo de organização em segundo plano, o seu aspecto de “deslize”, o seu caráter inorgânico, quase como um “equívoco” amador. É importante reconhecer a verdade desse movimento, não para negar a existência do racismo, mas justamente para reconhecer que é por meio dessa desidentificação fundamental entre causa e efeito que ele se organiza e se perpetua, o que coloca um tipo particular de dificuldade que os movimentos anti-racistas brasileiros conhecem bem. Deve-se apontar não só a existência do racismo, mas o modo como ele se organiza como um sistema complexo, que no caso brasileiro funciona por meio de processos sucessivos de desentificação que mantém seus efeitos (a exclusão do negro) ao mesmo tempo em que obscurece suas origens e intenções. Um racismo que existe quase como se “não quisesse” existir, e cuja perversidade consiste em permitir a certos grupos retirar todos os benefícios desse processo de exclusão sem, contudo, reconhecer-se enquanto diretamente responsáveis ou mesmo beneficiários dele.
“Deslizes” sistemáticos e recorrentes, sem intenção por parte de quem “errou”, e que quando acontecem (e acontecem o tempo todo) são imediatamente justificados a partir dessa falta de intencionalidade, de modo que o problema, sistemático, aparece sempre como uma “falha” não intencional no interior da normalidade democrática inclusiva. É uma descrição possível do clipe, mas também uma síntese do modo como o racismo brasileiro funciona. Sua perversidade possui, portanto, uma dupla orientação. Por um lado funciona como um processo de exclusão contínuo que no limite promove o genocídio da comunidade negra no país. Por outro, suas práticas cotidianas sempre aparecem como algo não essencial, secundário, desvinculado do campo das intenções, como se não fosse algo tão grave assim (“não é bem racismo, é injúria racial”). O racismo é sempre outra coisa, nunca coincidente consigo mesmo. Um crime perfeito, sem culpados, apenas vítimas.
IV
Nesse sentido o clipe se tornar interessante a contrapelo, não apenas como mais uma expressão dos limites ideológicos e estéticos da MPB neo-indie, mas como uma formalização mais ou menos transparente de um modo particular de estruturação do racismo, cuja espontaneidade é explicada pela recorrência naturalizada com que o vivemos cotidianamente.
Em 1988, ano em que se comemorava o centenário da Abolição, foi realizada uma pesquisa que se tornou relativamente conhecida, e cujo objetivo era identificar a especificidade do racismo à brasileira. Entre as respostas dadas a dezenas de questões, duas chamavam particularmente a atenção por seu caráter paradoxal e paradigmático. Enquanto cerca de 98% dos entrevistados afirmavam conhecer pessoas e situações que revelavam a discriminação racial no Brasil, os mesmos 98% não se reconheciam enquanto racistas. Tal paradoxo gerava um curioso efeito, identificado pela historiadora Lilia Schwarcz: a imagem que o brasileiro forma de si mesmo é a de uma ilha de tolerância racial, cercada de racistas por todos os lados. É importante não nos desfazermos desse paradoxo de modo a tornar as coisas mais simples, sustentando que todos aqui são racistas, mas também cínicos, hipócritas, etc.. Mais interessante é reconhecer a funcionalidade desse modelo paradoxal, que a meu ver simboliza o modo mesmo de organização local do racismo, que segue o mesmo parâmetro de organização de outros aspectos do sistema simbólico nacional. Em suas linhas mais gerais, tal sistema pode ser compreendido a partir do conceito de ideias fora do lugar.
Sabe-se que o conceito de ideias fora do lugar foi formulado originalmente pelo crítico Roberto Schwarz para dar conta do universo simbólico da sociedade oitocentista representado na obra madura de Machado de Assis. Mas, como a própria obra posterior de Schwarz permite reconhecer, o conceito pode perfeitamente ser ampliado para um conjunto mais amplo de relações sociais, de longo alcance na história do país, de modo que podemos compreender as “ideias fora do lugar” como uma espécie de “dispositivo” que organiza um modo de ser específico da nação.
Ao contrário do que afirma certa crítica, de forma bastante simplista, o conceito de Schwarz não se baseia numa oposição binária entre um centro onde as ideias correspondem de fato a sua origem social e uma periferia que importa conceitos estrangeiros sem criar modelos próprios de organização, fazendo com que as ideias girem em falso. As ideias fora do lugar não dizem respeito a sua relação com um centro, onde elas estariam no lugar. Trata-se, antes, do modo específico de funcionamento local de nosso sistema simbólico, o modo como o sistema ideológico se organiza por aqui. Sem passar diretamente por conceitos pós-estruturalistas franceses, Schwarz reconhece um modelo de organização simbólico local que se constitui a partir de sucessivos processos de descentramento e deslocamentos, cujo aspecto decisivo seria justamente o deslocamento contínuo e ininterrupto entre as ideias e seus fundamentos.
As consequências desse padrão ideológico são inúmeras (é ele que organiza, por exemplo, o foco narrativo machadiano, a partir do princípio da volubilidade). No caso do racismo à brasileira, podemos dizer que o deslocamento contínuo entre causa e fundamento permite que as práticas racistas nunca sejam compreendidas como sendo motivadas, de fato, pelo racismo: não existem negros nas universidades, mas a questão é social; a polícia só mata preto, mas a motivação é o ódio ao bandido; os funkeiros são considerados marginais, mas não porque são, em sua maioria, negros, e sim porque a música é uma baixaria, etc. Como resultado, temos todo um sistema social estruturado em torno de processos de exclusão racial e marginalização da comunidade negra (o que implica em dizer que o racismo é um dos fundamentos constitutivos da própria noção de sociedade brasileira), que se reconhece enquanto tal (todos sabem que o país é racista), mas é incapaz de se implicar e, consequentemente, identificar causas e punir responsáveis. Não é por outro motivo que, apesar do racismo ser considerado crime no Brasil há mais de 20 anos, ninguém tenha sido condenado.
Trata-se, portanto, de um sistema que opera por meio de um processo de deslocamento perpétuo entre a estrutura e seu fundamento (o princípio das ideias fora do lugar), que permite ao racismo ser ao mesmo tempo reconhecido enquanto problema e continuar existindo tranquilamente, pois nunca faz parte, de fato, do conjunto de intenções declaradas nem dos indivíduos (que nunca agem intencionalmente e, portanto, são incapazes de se reconhecer\serem reconhecidos enquanto racistas), nem da sociedade (nossas leis não são abertamente racistas). Acredito inclusive que o senso comum de que vivemos um racismo velado no Brasil não se aplica completamente, pois na verdade trata-se de uma prática absolutamente explícita e reforçada cotidianamente no imaginário local (vemos negros sendo agredidos e mortos todos os dias pela TV). O racismo não é implícito, ele é simplesmente sem consequências para seu(s) responsável(is), que é desimplicado por meio desse deslocamento ideológico entre causa e consequência. O resultado é uma espécie de descaramento sem consequências – pois o fundamento da coisa em si nunca está lá – que é o modo como o poder se estrutura no Brasil.
V
Voltando ao clipe, podemos dizer que, nesse caso, é a própria discussão em torno da intencionalidade que deve ser colocada em segundo plano. Pois o racismo é justamente o sistema que irá regular o conjunto de boas e más intenções, sempre em prejuízo da comunidade negra.
Em certo sentido, no clipe de “Você não presta”, realiza-se de fato a utopia inclusiva, com a cultura negra sendo “incorporada” à festa da classe média ciclovia-cirandeira. Contudo, para realizar-se com sucesso, tal inclusão depende do progressivo apagamento da dimensão histórica da cultura negra, transformando-a em uma sucessão de imagens fetichizadas sem maiores consequências. São diversas as referências presentes no clipe, devidamente higienizadas: periferia, desigualdades sociais (negros correndo atrás dos brancos), cultura hip hop, prisão (negro atrás das grades), pobreza. Tudo isso comparece ao baile (para criar um clima mais “selvagem”, segundo a artista), na qualidade de mera imagem. Trata-se, portanto, de uma incorporação que se realiza a partir de uma ausência fundamental, estruturante da própria possibilidade da grande festa acontecer. A assimetria é tanta que, ao final da festa, os negros ganham patinetes e bicicletas da classe média ciclovia, enquanto esta ganha vida e arte, aprendendo novos passos de dança e cantando samba para que os negros, em silêncio, apreciem.
Todos os esforços de celebração da diversidade parecem repor essa violência de base que, entretanto, nunca é efetivamente tematizada, retornando exclusivamente pelo impacto das imagens que não apresentam maiores desdobramentos para o conjunto das cenas. Por um lado, Mallu Magalhães aparece feliz demais em meio a cenas que remetem (sem querer, quase como um segredo que insiste em não se calar) a um imaginário social perverso e bastante atual (periferia, pobreza, prisão, desigualdade, cultura de resistência, etc). Por outro, é esse próprio imaginário que comparece de modo fragmentário, como um conjunto incômodo de sugestões mal resolvidas. O corpo de bailarinos aparece bem, tranquilo e feliz, enquanto o espaço social (presente nos cenários e adereços), a memória cultural e certo padrão estético (como a street dance) continuamente sugerem, sem reflexão, o contrário. Afinal, para o horizonte de imaginação do clipe (que segue o padrão Regina Casé da esquerda “Esquenta”), a cultura negra periférica só interessa na medida em que se separa dos problemas concretos da periferia.
É porque, no limite, a comunidade negra pouco importa para lógica desse sistema, que ela pode ser celebrada enquanto cultura. Ou melhor, ela só importa enquanto imagem fetichizada, como aquelas representações etnocêntricas essencialistas da cultura indígena apresentadas por colégios públicos e particulares no dia do índio. Assim neutralizada, a cultura negra periférica pode servir inclusive como representante da lógica cultural neo-indie e passear, tristinho, de patins com seu cachorro.
Apesar do clima geral de grande festa multicultural, os dois universos dispostos no clipe não se comunicam efetivamente, a não ser como uma encenação farsesca cujas coordenadas foram estabelecidas de antemão pelos donos da festa. A dor de Mallu Magalhães, que “já perdeu tudo” e já “fugiu do carnaval”, não se comunica com a dor social convocada pelo clipe, e que só comparece a contragosto, como efeito colateral. A canção, tomada isoladamente, não sugere ou tematiza a problemática étnico-racial em nenhuma instância, não estabelecendo nenhuma relação de necessidade orgânica com a cultura que o clipe, entretanto, mobiliza. Novamente, isso não seria um problema em si (diversos bons clipes tem imagens que não necessariamente dialogam com o conteúdo explícito da canção, extraindo força estética dessa dissociação), caso tal distância não fosse redimensionada pelas imagens, que assumem um caráter altamente fetichizado por conta da distância inicial que o clipe repõe continuamente, ao invés de superar esteticamente. Sem ter intenções declaradamente racistas (o objetivo do clipe não é rebaixar a cultura negra), o racismo comparece do início ao fim, sendo sistematicamente ignorado por uma estética vinculada a uma classe perfeitamente satisfeita com sua própria posição. A tal ponto que julga poder celebrar como conquista cultural o que é mais uma expressão da nossa barbárie social cotidiana.
Nesse sentido, talvez a maior perversidade do clipe não esteja nas cenas que remetem “sem querer” a situações de opressão, mas naquelas em que os negros participam da lógica indie, (andando de patinete, por exemplo). Como a comunicação de fato não acontece, sobressai a sensação de deslocamento, de forçada de barra, lembrando que, no fim das contas, foi a dona da festa quem mandou aquilo acontecer.
Antes isso do que ser confundido com quem não presta.
VI
Como já defendi em um texto anterior, não é correto julgar esse posicionamento em termos de pura alienação. Estamos diante de uma consciência melancolicamente satisfeita com sua própria posição social, marcada por uma distância de classe que, afinal de contas, só produz vantagens. Como afirma a letra da canção, ela sabe perfeitamente bem das cicatrizes que o mundo dá: contudo, seu universo interior importa mais. Até aí, nenhum problema, a menos que esse grau de satisfação com o próprio universo dependa diretamente da posição subalterna dos que não partilham dele. Afinal, só se pode ficar satisfeito com o universo insípido e sem atrativos de um mundo imaginado como uma espécie de grande condomínio fechado quando se fantasia a perversidade monstruosa do mundo exterior. Nesse contexto, o gesto de acolhimento da alteridade perde completamente seu valor crítico de transformação, tornando-se mais um signo de conformismo. Pois o sujeito ideal da MPB neo-indie é a favor de todas as minorias, de todas as causas não-violentas, e de todas as identidades (negros, mulheres, LGBTS, maconheiros, veganos), desde que, ao final do processo, siga confortável e só no alto de seu prédio. Neutraliza-se o potencial crítico das reivindicações sociais por meio da incorporação em um modelo estético marcado pelo conformismo e pela adesão infantilizada, melancólica e autoindulgente.
Convém ressaltar mais uma vez, para não deixar nenhuma dúvida, que não se trata aqui de acusar Mallu Magalhães de ser racista. Não existem motivos para acreditar que suas desculpas não tenham sido sinceras, e que suas intenções tenham sido as melhores possíveis. O que interessa aqui é aquilo que a obra nos revela sobre os limites ideológicos desse modelo estético, cujo problema não está no conjunto de boas ou más intenções particulares, mas em seu processo de estruturação, que é ao mesmo tempo artístico e social. O que, evidentemente, deixa tudo ainda mais terrível, pois não estamos tratando de indivíduos, e sim, de uma estrutura social. Afinal, como se diz por aí, de boa intenção o inferno está cheio.
De todo modo, o resultado final não poderia ser mais claro em relação a forma como determinado grupo pensa modelos de inclusão social. O clipe deixa transparecer o tempo todo algo de um horizonte social perverso e desconfortável – negros atrás de grades, construções precárias, lugares sociais assimétricos – que, entretanto, não resulta em nenhum tipo de impacto mais profundo no horizonte da canção, que se mantém em um estado contínuo de autossuficiência narcisista. Pois, no limite, é desse estado de coisas que o sujeito tira sua mais profunda satisfação. Existe algo de imoral nessa postura, que é a matriz do desconforto de parte do público, sobretudo da população negra.
A MPB neo-indie, enquanto parte de um segmento social mais amplo, é tão satisfeita e segura de si que se permite, inclusive, convidar aqueles que estão continuamente de fora para participar da festa. Desde que, ao final, permaneçam confinados no andar de baixo. Os diversos contrastes reforçados ao longo do clipe, contra sua vontade, apenas deixam mais evidentes qual o verdadeiro ideal a ser comemorado: a celebração, confortável e meiga, do seu próprio lugar de classe.
06\2017