Em certo sentido, a pornografia é a forma mais política de ficção, pois aborda como usamos e exploramos uns aos outros, do modo mais urgente e impiedoso.
J. G. BALLARD
Na cultura de massas aquilo que muda de um objeto para outro é quase sempre muito mais interessante e revelador do que o que permanece. Contudo, a crítica ideológica padrão tende quase sempre a confirmar esses objetos como o lugar por excelência do conservadorismo de baixa qualidade. Ou seja, enfatizando aquilo que permanece identico a si, o sempre mesmo, seu caráter redundante, aquilo que neles confirma o sistema, etc. Esse tipo de crítica facilmente tem um ar mais cool e descolado, além de fazer muito sucesso entre adolescentes. É o padrão que eu adoto com meus alunos, e é fundamental para a formação destes (com uma diferença fundamental com relação ao tom ofensivo usado por sujeitos como Felipe Neto, que busca consagrar-se a partir da humilhação do elo mais fraco). Entretanto, a depender dos objetivos, esse não é o método mais adequado para se lidar com a cultura de massas. A estratégia básica nesse caso é a tática do silenciamento: uma coisa que vende muito, tem conteúdo crítico quase nulo e realização estética de qualidade duvidosa não tem nada de interessante a dizer sobre o mundo, servindo basicamente como variação do ópio do povo, forma bem acabada da ideologia hegemônica. Eu particularmente tendo a preferir aquele tipo de abordagem crítica para qual TODA realidade é, desde já, ideologicamente realizada e, sendo assim, é possível operar uma inversão no que se compreende tradicionalmente como perspectiva crítica: os objetos estéticos com potencial crítico funcionam também como mecanismo de legitimação do status quo, e a cultura de massas opera com mecanismos de desvelamento ideológico. SOBRETUDO os que vendem muito, pois os mecanismos do sucesso tocam na Geistfundamental de sua época – a espiritualidade da mercadoria. Crepúsculo e 50 tons de cinza são respostas e formas de criação do feminino na cultura de massas e, sob essa perspectiva, merecem atenção.
Dito isso, não vou fazer a crítica de 50 tons de cinza, porque não li o livro, a não ser numa leitura dinâmica muito vagabunda de algumas poucas páginas. Nada de exercícios de crítica imanente ou coisa que o valha, portanto, para entender o valor ou ausência dele na forma do romance. Nenhuma preocupação com o valor intrínseco da literalidade do objeto. O que me interessa bastante nesse caso – e que é a existência do livro que torna visível, pois o debate se constitui a seu redor – são os juízos sobre ele, mais repetitivos que suas fórmulas, e ainda mais antigos. “O povo só gosta de porcaria”, “Vivemos numa época de decadência cultural”, “Saudades dos grande autores” e por aí vai. Juízos que tem a mesma idade da própria arte e que interessam muito, ainda mais quando, como nesse caso, se juntam a um riso masculino perverso de cumplicidade: “olha aí como a mulherada gosta de apanhar”, “se o cara tiver grana, a mulherada libera mesmo”. No fundo, tirando a mamãe, toda mulher que deseja é uma puta. O “melhor” dos objetos culturais de “baixa qualidade” (e não posso dizer que é o caso do 50 tons de cinza) é que eles nunca conseguem ser tão baixos quanto a sociedade na qual se inserem.
Mesmo sem ter lido a obra, portanto, é possível perceber em sua recepção crítica um inequívoco vício masculino do olhar. O principal deles é o que considera o desejo feminino da protagonista como rebaixado e interesseiro (como se fosse possível desejo sem projeções). No caso, Anastasia Steele (que Felipe Neto compara com uma paniquete) é vista como uma mulher que rompe com qualquer princípio ético ou moral por dinheiro – óbvio. Seu desejo é movido pelo interesse, condenação da mulher-puta. O equívoco dessa interpretação é o que o livro desfaz, também ideologicamente, já nas primeiras páginas: o lugar que ocupa o senhor Cinza não é o do poder absoluto, mas do trauma, da fragilidade. Esse lugar, que aparece como representação da força e da virilidade para outros olhares, oculta uma incapacidade infantil de lidar com o próprio desejo. O que se encena em 50 tons de cinza não é o mito da submissão feminina – embora ainda se construa como conto de fadas descafeinado, como acontece com a saga Crepúsculo, que não rompe com a condição subalterna feminina – mas o bom e velho mito materno, também presente em pornografia “masculina” – as inúmeras e infinitas variantes de enfermeiras que permitem a realização imaginária de nosso Édipo.
Claro que não existe nada de revolucionário ou feminista nisso: o homem frágil, que parece um menino, oculto por detrás de uma promessa de virilidade que faz a mulher gozar muito é o padrão romântico por excelência: Roberto Carlos, Fabio Junior, e praticamente qualquer pagode ou brega. Mas não se pode afirmar que o encanto está na figura do macho viril, como quer o olhar masculino que acredita na encenação fake dos filmes porno, e sim na fragilidade inscrita nessa virilidade. O verdadeiro escravo do livro (aquele que não consegue dar forma a seu desejo) é o senhor Grey, a quem só o amor incondicional pode salvar. Fantasia materna, portanto, numa época que retrata cinicamente o amor como uma relação de dominação sádica contratual, repleto de mulheres que gozam – talvez por isso mesmo o livro dispense as fantasias heróicas a respeito do cavalheiro dono de seu amor. O senhor Grey pode encarnar também o lugar da dor, bem distante do felizes para sempre tradicional, com a condição de que faça a mulher gozar. Muito. Ideologia pura e simples, é claro, mas de uma perspectiva feminina, que também não é novidade (Sabrina e Julia já fazem isso há um bom tempo), mas não deixa de ser interessante.
Ou seja, o livro pode ser conservador, fraco, etc. mas as críticas a ele não devem tentar se pautar por valores éticos que contém seu próprio grau (bem alto) de imoralidade. Condenar o desejo feminino não é o caminho para se criticar 50 tons de cinza. O problema maior, pelo pouco que pude acompanhar do livro e dos debates, talvez seja que essa entrega incodicional materna, não é sem custo: o senhor Grey é uma maquina de fazer gozar. Seu lema é ‘trepar com força’ – e são nessas explosões de violência sexual que a ideologia se revela em seu mais profundo grau. A paixão pelo real contemporânea, a própria realidade tornada ideologia, agora da perspectiva feminina, que não a redime, mas redimensiona. Segundo um psicólogo: “Muitas leitoras de 50 tons de cinza usam o livro como uma arma para emparedar seus parceiros exigindo um homem que trepe com força porque querem ter certeza mais que absoluta de que são desejadas. Apenas a presença, a penetração, o carinho não bastam num mundo onde a desconfiança se coloca como vigilante dos cafajestes e insensíveis. Se ele quer mostrar seu desejo deve meter até o fundo sem piedade”. O desejo feminino não se realiza aqui em projeções românticas que ocultam a dimensão sádica contratual das relações amorosas (e as críticas masculinas mal ocultam o desejo de retorno a essas representações ideológicas do cavaleiro perfeito). No livro, essa dimensão não é apenas revelada, como serve de motor do enredo. Assumir o gozo feminino é um avanço: o problema é seu redimensionamento ideológico contemporaneamente regressivo.
Outro equívoco decorrente de um olhar eminentemente masculino é a percepção de que a ação do livro é truncada, ou não se desenvolve. Pode até ser verdade, mas essa interrupção da ação é o próprio gozo feminino em ação, e ajuda a explicar o sucesso do livro. Faz mais parte do conjunto de acertos do que dos erros (o equivalente crítico seria afirmar falha no desenvolvimento narrativo de Esperando Godot, porque a personagem título nunca aparece). Um livro pornográfico para mulheres só pode aparecer ao padrão masculino de olhar (que, para ficar claro, não se confunde com o olhar do homem, basta ver essa crítica AQUI) como um excesso discursivo, deficit de ação, em suma, uma longa e desnecessária sessão de preliminares.
Segue o vídeo do Felipe Neto, que acerta o tom para atingir seu público-alvo, explicitamente, o grupo pré-adolescente que ele ataca para poder proteger (?) com sábios e maduros conselhos como valorizar a virgindade, não se entregar sem amor, não trepar com força, etc.
Segue a opinião, retirada da internet, de uma leitora fã de 50 tons de cinza: “Christian Grey, ou, Sr. Grey: um homem de 28 anos, magnata, CEO de sua empresa, controlador, dominador, ciumento, protetor, bonito, sadomasoquista, misterioso, com cabelos loiro acobreados, olhos acinzentados, corpo em forma que é capaz de fazer coisas lindas e românticas, por exemplo, te enviar um IPAD com fotos dos momentos que passaram juntos e músicas que tem relação com a história do casal (ownnnn) ou aparecer 15 min depois, na sua casa, assim que você desligou o telefone falando que queria que ele estivesse ao seu lado (que homem em sã consciência faria isso??? Se vocês conhecerem algum, por favor, me passem o telefone!); te presentear com um carro caríssimo, um guarda roupa novo com roupas de marca e outras coisitas más, e, é bom de cama. Mas, como tudo não é perfeito, ele teve uma infância difícil e possui alguns problemas, traumas que você ajudará a superar, porque, afinal, a mulher adora cuidar, se achar necessária e ser um pouquinho heroína também. Portanto, Christian Grey é o Príncipe Encantado Moderno”. Análise perfeita e honesta da imagem de leitora com a qual o romance dialoga. Interesseira? Provavelmente, mas o valor dos presentes não está apenas em sua dimensão material. É claro que o IPAD comove tanto mais quanto mais caro e moderno for, mas ele tem também de vir com fotos dos momentos maravilhosos do casal (ainda mais maravilhosos porque o IPAD é caro e de última geração). Um cheque preenchido no valor do produto não serve como substituto, e não tem nada de romântico.