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Sobre Macacos, Bananas e Coxinhas: racismo e antirracismo nos gramados europeus

I

O gesto de Daniel Alves de comer a banana atirada em campo por um torcedor europeu racista foi genial em sua pureza plástica e simplicidade. Sua riqueza, no entanto, é fundamentalmente estética, devendo sua “radicalidade” ser apreendida nesses termos. Dessa perspectiva, tornam-se injustas as acusações de falta de gravidade, ou “seriedade” de seu gesto – para Douglas Belchior, por exemplo, em artigo para Carta Capital, Daniel Alves só pôde “ignorar” a banana devido a sua posição de classe, não podendo seu gesto servir de base ética para o combate ao racismo que cotidianamente atinge pretos pobres das periferias de todo mundo. Contudo, se é verdade que o gesto não pode ser transposto imediatamente para o campo político sem converter-se em mera ideologia, é verdade também que o jogador fez mais do que simplesmente “ignorar” o racismo. De fato, o impacto de sua atitude consiste precisamente no contrário, no fato dele (ou a agencia de publicidade, eis a questão) ter proposto uma reação ativa a uma atitude que pretende colocar a vítima em posição de subordinação e passividade.

Da mesma forma são apressados os argumentos que sugerem que o gesto de Daniel só gerou grande repercussão porque o jogador é famoso (contudo, é verdade que toda repercussão deve-se em grande parte ao agenciamento do gesto pela campanha publicitária). Balotelli é ainda mais famoso que Daniel Alves, mas seu choro não gerou nenhuma mobilização em massa. Com todo o respeito devido a sua dor, o choro negro do atacante do Milan faz parte do roteiro normatizado concedido cotidianamente aos humilhados, onde aquele que se “solidariza” da dor do Outro goza duas vezes, tanto com a humilhação que confirma sua superioridade quanto com seu altruísmo, que alivia a consciência. É a linha por excelência dos programas que “realizam os sonhos” dos mais pobres, como os do Luciano Huck, e de filmes hollywoodianos que focam no sofrimento das minorias. O gesto de Daniel, ao contrário, bloqueia o gozo e expõe o vazio do desejo do Outro, deslocando a banana do roteiro imaginário racista, deixando-a pairar enquanto fundamentação absurda. Lembra-nos radicalmente que o conceito de raça não existe para além dessa ridícula banana. Ao expor brilhantemente o que de fato é uma banana, o gesto escancara a fratura que se inscreve em toda estrutura ideológica, revelando a fragilidade profunda do sistema racista, sustentado pela Coisa absurda e sem sentido.

Daí o equívoco de considerar que Daniel Alves não tenha tratado com a devida seriedade o absolutamente grave tema do racismo: como bem nos demonstra as fábulas kafkianas, os quadrinhos de Alan Moore e alguns filmes de Glauber Rocha, o mais trágico do poder é ser ele fundamentalmente ridículo, estruturando-se não raramente enquanto uma piada de mal gosto. A forma de seu conteúdo trágico é cômica e farsesca, e sua força decorre precisamente daí – basta nos recordarmos da infame inscrição pendurada na entrada de Auschwitz, “o trabalho liberta”, talvez a suprema piada – o ideal de Rafael Bastos e Danilo Gentili – que torna impossível todo humor. Não é apenas a interpretação crítica do sintoma que possibilita a criação de gestos de resistência e superação: as vezes o necessário é exatamente o oposto, e essa é a aposta da marcha das vadias, por exemplo, que com sua alteridade radical preenche o lugar que para o opressor deve permanecer fundamentalmente vazio. Assim como o agressor machista “sabe” que a mulher não é uma vadia, o agressor racista “sabe” que o negro não é um primata. É o distanciamento desse saber que põe em movimento a dinâmica da agressão, a subordinação socialmente condicionada a um falso papel, sem fundamentação que não o imaginário do opressor. Ao se confrontar esse lugar do saber deslocando seu papel determinado na rede significante – não com um “eu não sou isso que você diz”, que já é incorporado de saída pelo gesto opressor, mas com um “eu sou isso que você diz, justamente porque você não sabe aquilo que pensa saber, sendo incapaz de sustentar esse desejo em sua alteridade radical” – a rede imaginária que sustenta o gozo perverso do opressor é desarmada e exposta em seu vazio absurdo.

II

Outra coisa, no entanto, é o efeito desse gesto ao se viralizar e converter-se em hashtag. Em certo sentido, e com aparência contrária, a campanha #somostodosmacacos foi uma reação contra o gesto de Daniel, pois se esse aponta para certa inconsistência fundamental do núcleo racista, a campanha trata de preencher esse vazio com conteúdos paz e amor humanistas padrão FIFA, tão nulos e irrelevantes quanto as mensagens anti-racistas que ela espalha em jogos oficiais na forma de cartazes que mal ocultam sua fantasia fundamental: o racismo está para o padrão Fifa assim como a pedofilia está para o catolicismo. Todo mundo sabe que o futebol moderno, uma invenção europeia, virou arte por causa dos pretos – o excesso não previsto da modernização. Natural, portanto, que quanto mais mercantilizado, padronizado e “racionalizado” pelo modelo democrático liberal padrão FIFA, mais frequentes serão os casos de racismo, uma vez que a diferença negra se torna excessiva, precisando ser devidamente regulamentada.

É grave, pois, quando nossa representante política maior diz ser essa a grande lição brasileira no combate ao racismo, seguindo uma sugestão da agência de publicidade. A apropriação imediatamente “política” do gesto performativo de Daniel Alves esvazia sua radicalidade, podendo assim se realizar perfeitamente enquanto estratégia publicitária que beneficia todos aqueles que estão pouco ligando para o racismo, para dizer o mínimo – Fifa, Luciano Huck, agência publicitária, etc – mostrando o quanto todos eles, enquanto humanos, partilham da mesma dor e humilhação, esvaziando o gesto. O verdadeiro equivalente político do gesto não consiste em sua repetição (que só pode acontecer a partir de um esvaziamento do sentido), mas antes no ater-se a seu núcleo, reconhecendo os conteúdos sistêmicos do racismo e encontrando forma de neutralizar o funcionamento de seus significantes. Não seria má ideia processar a agência que bolou a campanha, junto com o Huck e suas camisetas oportunistas, por tentar lucrar com o racismo e ajudar a reforçar o estereótipo que associa o negro ao macaco. Assim como seria ótimo acrescentar mais um processo à longa ficha da FIFA, que além de não ser capaz sequer de coibir tais casos criminosos, ainda tenta no mais das vezes passar um pano. Desvendar o truque e punir os responsáveis é o equivalente político do gesto performativo de Daniel Alves.

Creio, contudo, que o saldo final da polêmica tem pelo menos um aspecto positivo, pois a estratégia de marketing do marido da Angélica logo foi percebida e denunciada naquilo que ela é, uma tentativa baixa e patética de tirar vantagem da miséria alheia (um modelo utilizado há muito pelo apresentador em seus programas). Ponto para a mobilização digital e para os diversos setores da militância do movimento negro, pesquisadores e colunistas que imediatamente se posicionaram e divulgaram sua reação negativa. E ponto também para o olhar crítico da população que de uns tempos pra cá tem tomado gosto pelo debate político público, com avanços e perversidades.

III

Isso nos leva a uma colocação muito boa da amiga e escritora Lilian Aquino, dessas que obriga ao pensamento confrontar-se com suas limitações, ao se deparar com conjunturas específicas: porque a adesão a uma campanha do tipo “Somos todos negros” é rechaçada pelo movimento em geral, enquanto que a adesão aos Guarani Kaiowà é tomada como caminho válido e positivo? Acho que ela não se aplica especificamente ao caso do macaco, em que o que está em questão é mais a apropriação publicitária criminosa de um ato de racismo usado para obter lucro, mas é muito interessante e pertinente refletir sobre o porque do movimento negro se incomodar quando não negros afirmam algo como “somos todos negros”, ou “no Brasil ninguém é branco”, e no caso do Guarani Kaiowa esse gesto ser relativamente aceito pela militância indígena e por intelectuais sérios e competentes como Eduardo Viveiros de Castro e Idelber Avelar. Aliás, esse já é um primeiro ponto interessante: mulheres, negros, índios, homossexuais, etc, são minorias irredutíveis em sua especificidade, e as estratégias de embate político devem ser diferentes em cada um dos casos, ou seja, o que se aplica a um caso não necessariamente servirá para outro.

Particularmente eu consigo entender bem o incômodo com o apoio humanista do tipo “somos todos negros”, e os riscos contidos nessa posição, sendo mais difícil compreender a legitimidade desse gesto em relação aos Guarani Kaiowa. Inclusive questionei muito no início da campanha (queria escrever algo do tipo Guarani Ponte Preta), mas depois que vi a adesão e o apoio de militantes e figuras que eu respeito, fiquei me perguntando sobre as razões que, afinal, justificam essa diferença?

Os motivos para ser contra a adesão são vários. Eu gosto sempre de fazer um exercício de transposição: imagine o quão esquisito seria um heterossexual “padrão” que levantasse a bandeira ou usasse uma camisa do “Somos todos mulheres”. Não é uma posição impossível de se assumir – o Laerte é o melhor exemplo – mas para que essa fala tenha legitimidade é preciso um posicionamento prático e subjetivo muito mais radical do que uma manifestação de apoio virtual, ou publicitária. Porque as mulheres, que conquistaram espaços para fazer ouvir sua voz, irão cobrar esse comprometimento. É preciso que o sujeito rompa efetivamente com as barreiras de gênero em sua vida, o que implica em uma alta dose de comprometimento ético, além de muito embate social e político. Caso contrário, as mulheres imediatamente questionarão esse apoio, com razão, afinal, ele é baseado em um princípio que no limite nega a especificidade de sua luta: “todo ser humano sofre em alguma medida, logo, o sofrimento das mulheres equivale ao sofrimento humano em geral, e não se resolve com políticas específicas”. É por isso que não existem homens feministas: não é por falta de capacidade dos homens de “entender as mulheres” (homens e mulheres possuem o mesmo grau de complexidade e são ambos incapazes de compreender a si próprios) ou de interesse, mas sim porque se trata da conquista de um espaço de “fala” para as mulheres, e que envolve, por exemplo, a irredutibilidade do corpo e da psique da mulher, que não pode ser reivindicado a partir de outro lugar. O protagonismo desse movimento é delas, e não deve ser “transferido”. O mesmo acontece com os negros. Um exemplo da perversidade dessa transferência é o famosíssimo caso da “Princesa Isabel”, a libertadora, que faz com que a abolição seja interpretada até hoje como um gesto de piedade da elite branca, e não como resultado de séculos de luta e resistência da comunidade negra. O mesmo princípio está nos gestos de apoio de Luciano Huck e Reinaldo Azevedo, reacionários da pior espécie e defensores descarados do privilégio de classe (lembra do episódio do rolex de R$ 39.000 do Huck?), que aderiram rapidamente a banana.

Existem muitos brancos que são reconhecidos pela comunidade negra como “mais pretos do que muito preto”, por seu grau de comprometimento e respeito seja com a causa, seja com a cultura. A diferença consiste aqui justamente no grau de comprometimento. É importante se perguntar se a adesão a uma campanha do tipo “somos todos negros” está efetivamente beneficiando aos negros, ou servindo muito mais como compensação simbólica para o lugar do opressor racista, com o qual ninguém (ou quase) hoje gosta de se identificar. Ou pior, contribuindo com o sistema de opressão brasileiro, que insiste em não reconhecer a especificidade racial de seus problemas. Circulou por esses tempos a foto de um policial militar armado – que deve ter encontrado muita satisfação atirando em “marginalzinho preto” por aí – segurando uma banana. Por melhor que sejam suas intenções, o que essa identificação ideológica efetivamente promove? Não existem formas menos ideologicamente “arriscadas” de se engajar e sensibilizar com a causa negra? Adiantando a resposta, sim, existem muitas, mas são mais complexas e exigem muito mais do que a comoção com histórias tristes de negros pobres que são exploradas pela televisão ou em filmes como “12 anos de escravidão”. Isso sem falar da especificidade do racismo brasileiro, que usa justamente a “identificação humanista” para deslegitimar as reivindicações do movimento: “No Brasil ninguém é branco, logo, cotas raciais não fazem sentido”, e coisas do gênero. Ninguém é branco no mundo inteiro, não é um privilégio tropical, porque o conceito de raça é uma invenção: a questão é que, a despeito disso, os mortos e presos tem coincidentemente a pele mais escura. Daí a redundância de afirmar que o problema no Brasil é social e não racial: o conceito de raça é necessariamente social, por ser ideológico, sendo a dimensão biológica da coisa apenas mais um dos aspectos de sua estrutura. Enfim, os argumentos são muitos.

O que leva pra questão seguinte, de quando esse tipo de identificação parece válida. Lembrei da foto do Sheik, do Corinthians, beijando um cara, que é uma forma imagética de afirmar “somos todos homossexuais”. A maior prova da validade da postura nesse caso é que ela não pôde sofrer um processo de adesão em massa, como no caso da foto do Neymar. Ao contrário, a opinião pública caiu de pau no cara, que teve que se “justificar” publicamente, com uma piada homofóbica contra são paulinos, diga-se de passagem. Nesse caso o gesto não serviu para ocultar um problema – a de que o sofrimento do negro não equivale ao sofrimento do ser humano em geral – mas para questionar a posição de poder associada a sexualidade do macho alfa. Seu efeito foi o de questionar lugares comuns – o que é ser homem – e não reforça-los: nada mais fácil no Brasil do que se afirmar como não-racista, e ao mesmo tempo ser a favor da redução da maioridade penal e de pretos amarrados em poste, pela especificidade com que a ideologia se relaciona com a realidade no país. As pessoas são contra os negros em outros espaços ideológicos: “o negro merece ser tratado igual a todos, mas o bandido tem que ser morto e torturado como um escravo”, enunciado que recalca a relação entre a herança colonial e o mapa da criminalidade no país. O fato do bandido ser preto vira uma questão de mera coincidência.


No caso dos Guarani Kaiowa, creio que o principal aspecto passa pela visibilidade desse grupo, e de seu poder político, que ainda não conseguiu fazer ouvir a sua voz. Quantas pessoas sabiam quem eram antes da adesão em massa do facebook? A adoção do sobrenome teve a função simbólica de uma faixa, um cartaz virtual, que chamou atenção para um problema que a grande mídia deixava invisível. Creio que essa repercussão foi um dos estopins que fez o governo Dilma perder tanto em popularidade, chamando atenção para o processo de genocídio indígena que seu governo está promovendo. Acho que a excelente pergunta da Lílian tem que ser respondida em termos de conjuntura: é porque as causas são diferentes que a mesma estratégia possui efeitos positivos ou negativos, que devem ser revistos a todo momento. Quando (ou melhor, se) a questão indígena ganhar a mesma projeção e conquistar o mesmo espaço que tem o movimento negro e o feminista, por exemplo, a estratégia de assumir essa identificação deve necessariamente ser revista, pois seu impacto político deixará de fazer sentido para se tornar um problema. Por enquanto é fundamental que todos se mobilizem para mostrar que os Guarani Kaiowa existem, e estão sendo sistematicamente exterminados. Quando essa etapa for vencida, deve-se passar para outra.

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Acauam

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