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A visão demoníaca de Salieri

Nos momentos iniciais de Amadeus (Milos Forman, 1984), acompanhamos o maestro Antonio Salieri instaurado em um manicômio para onde foi levado após uma tentativa frustrada de suicídio. Nele, conversa com um jovem padre que pretende absolvê-lo de seus pecados. Em dado momento, o maestro toca para o padre algumas melodias de sua autoria, mas o jovem rapaz, apiedado, não reconhece nenhuma. A última peça entoada por Salieri, no entanto, é alegremente reconhecida. É de Mozart.

É bastante evidente que o foco principal do filme não é a tragetória do garoto prodígio Mozart, mas o próprio olhar devoto de Antonio Salieri, o anjo caído. A perversidade aqui, e que gera o potencial dramático da narração, é que o primado do ponto de vista não é um privilégio, e sim parte de sua danação, pois Salieri está condenado a existir exclusivamente a partir da sombra do gênio, de quem era o principal admirador. Como Judas, Salieri é o Outro que só existe a partir daquilo que “negou”, ou antes, sua negação participa ativamente da construção positiva do mito. O filme é antes de tudo a própria constituição da punição de Salieri – cujo olhar atormentado terá grande poder narrativo – como se o verdadeiro castigo do Cão fosse a obrigação de perpetuar a história e a glória de Cristo. Pode-se dizer que, em linhas gerais, Amadeus é uma história sobre Deus narrada do ponto de vista do Diabo em pessoa. Ou ainda, um filme sobre Cristo narrado da perspectiva de Judas. Sua força depende do grau de radicalidade desse tabu, um dos maiores do reino cristão, o mais polêmico evangelho apócrifo.

Mas no que essa associação entre Salieri e ‘”aquele-que-não-se-ri” se sustenta, em termos narrativos? A referência óbvia fica por conta do próprio Salieri, que desde o início associa Mozart ao todo-poderoso, para explicitamente o recusar. A verossimilhança desse reconhecimento (porque apenas Salieri é capaz de compreender a centelha divina em Mozart?) é construída cinematograficamente por um bem estruturado conjunto de “deslocamentos” e simetrias. Salieri é um músico devotado – tal qual Mozart – que entrega a si e a sua arte (em verdade, um só) completamente a Deus; por isso mesmo, torna-se dotado do privilégio\maldição de reconhecer o trabalho do criador na terra, ou melhor, na música, seu campo de devoção. Além disso, tal qual Mozart, o maestro italiano também está deslocado em relação a seu contexto, sem pertencer aquela classe ou aquele país. Salieri é um elemento de transição entre dois mundos, que sai do “inferno” da vida burguesa medíocre para o “paraíso” da aristocracia vazia. Até seu encontro traumático com a “Coisa” divina, seu sucesso mundano (como compositor da corte) confirma a presença de Deus em si e preenche sua vida de significado – como deve ser, aliás, em uma sociedade hierarquizada e estamental. Contudo, a emergência de Mozart o força ao reconhecimento de um paradoxo: a inadequação entre a aparência (sua vida de contenção) e a realidade (o desregramento milagroso de Mozart) de Deus.

O que confirma a transformação demoníaca de Salieri, a configuração de sua imagem de anjo caído, é a saída que ele encontra para esse “paradoxo” divino. A solução, “celestial” do dilema, uma saída burguesa-cristã, seria a recusa da falsidade do mundo, assumindo que a verdade divina está em oposição a norma aritocrática, ao qual ele dedicou sua vida. Nesse caso, Salieri se colocaria ao lado de Mozart contra a estreiteza de visão de sua época, aceitando que, no limite, a morte de seu pai foi em vão – pois suas palavras “não serás músico” não eram uma proibição, e sim uma simples constatação. Um ato de pura devoção, contra sua própria vida. A solução “aristocrática-ateista”, por sua vez, (representada pelos demais membros da corte) seria a de ignorar o divino em Mozart e tratá-lo como um jovem arrogante presunçoso, que constrói obras com “notas demais”, etc. Uma solução bem mais “realista” e pobre em termos narrativos. Salieri, ao contrário dos provincianos da corte, sabe que a quantidade de notas é perfeita e que aquele é um milagre de Deus, como ele até então acreditava ser. Por isso sua solução é “demoníaca”: ele reconhece Deus, reconhece que aquilo que o havia tomado não era o divino, mas um artesanato muito mais mundano (para o qual é preciso ter talento, sem dúvida, mas pré sujeito moderno, comprometido com o mais prosaico) e deliberadamente se propõe a colocar-se contra o ponto de vista que ele ama e julga verdadeiro. Um gesto de amor profundo, e não de desprezo – e o filme retrata muito bem o caráter destrutivo desse amor\ódio. Salieri ama tão profundamente a Deus que não suporta a ideia de estar afastado dele. Por isso, torna-se deliberadamente um representante do Inferno. Atacar o seu amor é sua forma de mostrar a mais profunda devoção: já que Deus não participa efetivamente de seu ser, Salieri se dedica a fazer com que ele o preencha negativamente, tornando-se Lucifer.

(é claro que existe aquela inveja bem mundana por um moleque qualquer que é mais genial do que ele próprio que abdicou de todas as paixões em nome de uma só Verdade. Mas o conteúdo desse sentimento é muito mais trágico que mesquinho – e a trilha sonora reforça essa tragicidade muito bem – porque ligado a pulsões muito mais profundas, que o acabam por consumir. Salieri associou sua auto-realização à morte do pai, pela qual sente-se responsável (ele pediu um milagre a Deus para poder tornar-se músico, e seu pai, que era contra, engasga-se no almoço), substituindo-o por um Pai mais adequado e coincidente com seus desejos, no caso Deus. Contudo, quando o encontro com Mozart re-encena a frustração original (não ser O músico, não portar a verdade da música em si), a sua solução é repor exatamente a mesma fixação não resolvida: matar o Pai, no caso, Deus. O trágico é que se a primeira morte paterna colocou-o para si ao lado da verdade (a música) que o permite construir sua vida, essa segunda deliberadamente o afasta e paralisa – ele “morre” junto com Mozart, pois sua existência se paralisa ao assumir para si a condição de sombra, ou de “Santo patrono da mediocridade”. Como se houvesse um “retorno” da primeira interdição paterna, que o impede de ser verdadeiramente músico e participar da divindade. O pai funciona aqui como sintoma dessa interdição fundamental do desejo: “eu não posso ser músico” se converte em “meu pai não permite que eu seja músico”. Desse modo, a morte do pai funciona como o mecanismo que o permite superar essa insuficiência originária. Entretanto, o Real dessa incapacidade retorna (a verdade da música está ao lado de Mozart, não dele), tornando a segunda morte um ato desesperado – inevitável passage à l’acte – de impotência. Para fugir do confronto com seu próprio vazio, Salieri substitui seu pai real pelo próprio Deus. Revelado o truque, decide matar Deus, o que o devolve para o vazio inicial).

As relações de simetria entre as personagens também são perceptíveis em outros pontos. Mozart não consegue se livrar do fantasma do pai e, por isso, não pode crescer (a infantilização faz parte de sua genialidade). Salieri, por sua vez, perdeu o pai logo cedo, acreditando ser resultado de um acordo feito com Deus por oração – a morte do pai como garantia da presença de Deus em si. Assim como a perdição de Mozart é nunca ser capaz de livrar-se do pai – incapaz de superar a castração – a de Salieri consiste em assassinar continuamente o próprio pai. Mozart submete-se ao pai, e por isso não se submete as normas sociais – só reconhece o poder paterno (o Real que retorna como trauma aqui é que a sociedade não aceita essa condição secundária, que para Mozart é natural). Salieri mata o pai para melhor se submeter as normas sociais. A aparição de Mozart funciona para ele como o confronto com aquilo que em si escapa da adequação social que ele almejava – ou seja, com a verdade expressa na proibição do pai (“não serás músico”). O que ele enfim reconhece no espelho do Outro é que Deus está justamente naquilo que por ele foi sacrificado, pois ao passo que ele é a encarnação perfeita da norma, Mozart é o próprio Acontecimento que ressignifica o todo e instaura uma outra normatividade. Ao sacrificar sua vida em nome de sua paixão (devoção), Salieri sacrificou a própria verdade de sua paixão.

O que lhe resta então é dedicar sua vida a esse vazio, dando existência a Deus em si a partir de seu enfrentamento. Sua “salvação” é fazer de Deus um fantasma, e tornar esse espectro a razão negativa de sua existência. A perversidade aqui é que sua única forma de aproximar-se de Deus (negativamente) é também sua maior punição – o reconhecimento de que ele jamais irá encontrar-se com Deus. Não por acaso, o grande filme sobre a vida de Salieri é um filme sobre Mozart. Só conhecemos Salieri porque ele participa, em negativo, da existência de Mozart. Essa é sua punição: só existir a partir daquele que ofuscou sua existência para sempre. A forma narrativa dá consistência estética ao tormento da personagem, secundário mesmo quando é um narrador em primeira pessoa.

Por isso a crítica padrão ao filme – a de que ele é ruim porque coloca em termos individuais (o “gênio”) aquilo que seria uma questão social (norma aristocrática x subjetividade burguesa emergente) – não é suficiente para quebrar seu encanto. Primeiro porque o aspecto social é, sim, explorado no filme em diversos níveis –o dinheiro é a grande perdição de Mozart. Sua força, entretanto, consiste em não ceder à facilidade do tema da mera mesquinharia de Salieri, optanto por mostrar que no fim das contas ele estaria tentando tirar da jogada um concorrente muito mais talentoso, que prejudicaria sua carreira, etc. Para o elemento trágico funcionar, precisamos acreditar na verdade de sua devoção, ou seja, acreditar na fantasia de que ele está confrontando não um “colega” de profissão, mas o próprio Deus, aquilo que ele mais ama no mundo, e que dá sentido para sua existência. Que dizer, a força estética do ponto de vista está no caráter alegórico das personagens. Acompanhamos nada mais, nada menos, que uma disputa entre Deus e o Canhoto em pessoa, ou entre um santo e um satanista, contado da perspectiva de Satanás, que perdeu a batalha. A história de Cristo da perspectiva atormentada de Lucifer, que destrói sua obra como um gesto de amor e devoção. Não que o filme endosse a perspectiva demoníaca: como vimos, a grande perversidade da história é que a narrativa que acompanhamos é a forma mesmo da derrota do Demo, sua punição – não por acaso, sugerida por um padre. O que talvez o torne mais herético do que se imagina, tal como o evangelho de Judas Iscariotes, ao sugerir que a traição de Judas foi um gesto, talvez o mais radical, do mais puro amor.

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Acauam

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