São muitas as coisas que aprendi a admirar lendo Antonio Candido, tomando como uma espécie de modelo ideal de conduta. Uma delas é a primazia da leitura do texto\objeto estético, independente das frágeis certezas que podemos ter do lugar de Verdade de nosso horizonte teórico, ou de nossas convicções políticas. Aliás, Antonio Candido nos ensina que o rigor crítico muitas vezes implica justamente em não seguir uma linha teórica específica, mas reter um conhecimento aprofundado de tantas quantas forem as linhas exigidas por seu objeto de investigação. A verdadeira crítica se faz ali onde se torna impossível preencher relatórios de pesquisa.
Sua assombrosa e praticamente impossível capacidade de alinhar rigor e densidade intelectual com um altíssimo nível de clareza e lucidez na escrita é outro de seus traços admiráveis. Candido conseguia aquela síntese tão rara (muito, mas muito rara mesmo) entre professor excepcional e intelectual verdadeiramente relevante, daquele tipo de relevância que não se mede pelo tamanho do Lattes, mas pelo impacto real na existência daqueles que importam. Em um país com altíssimos níveis de analfabetismo, ajudou a colocar a literatura em primeiro plano como instrumento de autoconhecimento do país, instituindo e ajudando a popularizar os cursos de Letras entre nós.
Todas essas características tinham por base a convicção ética profunda de que o Brasil só seria um país decente quando incluísse os mais pobres em seus processos de cidadania. Seu modelo de escrita, que almeja atingir aquele leitor\ouvinte que não domina os jargões especializados (lição modernista, via Manuel Bandeira); sua leitura do texto literário pensado sempre em relação as possibilidades de construção de cidadania; seu desejo de fortalecer e popularizar instituições que sequer existem e pareciam impossíveis no Brasil (lição modernista, via Mário de Andrade). Acredito que até mesmo sua migração das Ciências Sociais para o campo das Letras deve-se a esse anseio de popularização\democratização, falar a mais gente, contribuir mais diretamente.
Se fosse gringo, teria influenciado toda uma geração de críticos literários no mundo. Seria um Bakhtin, Barthes, Foucault. Aqui, ajudou a tornar o curso de Letras um dos mais populares e democráticos do país, além de colocar a literatura no centro das investigações sobre as contradições da sociedade brasileira. Um projeto generosamente radical.
Ainda ontem estava lendo sobre a importância e o impacto da Formação da Literatura Brasileira, o quanto ela já foi acusada de crimes opostos – nacionalismo excessivo, por Haroldo de Campo e pelo multiculturalismo atual, ou pouco nacionalista e lusófilo, por Afrânio Coutinho – o que só confirma seu estatuto de clássico. E fui reconhecendo em meu próprio trabalho algumas convicções profundas, daquelas que se tornam tão suas que você esquece que tem autoria, e que aprendi com Antonio Candido. Uma delas é a noção de que a principal causa da fragilidade do sistema literário brasileiro (apesar de sua consolidação) é a participação ativa no sistema de exclusão dos mais pobres, que regula a ordem institucional do país até hoje. Coisa que tantos hoje afirmam exaltadamente (vejam como a literatura é excludente!), como se fosse uma descoberta recente, quase inédita. Mas em Candido, existe dialética, e esse sistema excludente será o mesmo a produzir obras de grande qualidade estética. O segredo consiste na incorporação reflexiva (ou semi-reflexiva) dessa disfunção na própria forma literária, fazendo de seus melhores momentos um espaço privilegiado de expressão de um pensamento contra ideológico. Um diagnóstico formal que é ao mesmo tempo um horizonte de construção nacional e um posicionamento ético diante da barbárie. Minha própria convicção sobre música popular deriva diretamente dessa percepção de Candido: a de que o sistema cancional é fortíssimo no Brasil justamente por ser espaço radicalmente ocupado pelos mais pobres, realizando simbolicamente aquilo que o país inviabiliza na prática. O exato oposto da posição da literatura, portanto, e que também consegue atingir resultados contra ideológicos (embora seja cooptado frequentemente pela ideologia), mas por razões bem diferentes. Sua força não está na formalização do caráter excludente das instituições nacionais, mas na verdade da sustentação fantasmagórica de uma voz que, pela lógica do país, não deveria existir. A fragilidade no caso não está na inscrição da forma, mas na impossibilidade do salto civilizatório, sistematicamente barrado. “Crime, futebol, música, caralho, eu também não consegui fugir disso ai”. Mesmo sem que o Candido aborde diretamente música popular, carrego comigo a mesmíssima convicção, fortalecida pelo contato mais íntimo com sua obra: que o grau de sucesso ou fracasso de uma civilização de mede pelo destino que ela confere aos mais pobres. E é a partir desse horizonte, que é ético, que as obras devem ser avaliadas.
Rigor intelectual, fidelidade aos princípios éticos de forma não reducionista, horizonte de emancipação humana. Antonio Candido nos deixou, mas sua missão (para além da intelectual, humana) foi mais do que cumprida.