Inicialmente, reproduzo na íntegra o texto de Caetano Veloso publicado no Estadão quando da morte de Belchior.
‘Canções de Belchior não são das que morrem’, diz Caetano Veloso
A última vez que vi Belchior foi em São Paulo, pouco antes do seu famoso desaparecimento. Ele me procurou e conversamos bastante. Me trouxe de presente dois retratos de Drummond desenhados por ele, muito sugestivos e profundamente sentidos. Achei significativos a visita e os presentes. Nunca me esqueço de sua entrada no palco do teatro João Caetano, quando o vi pela primeira vez. Ele veio da coxia quase correndo e gritando, antes da introdução da banda: “Quando me lembrei já estava em cima da hora!” Era a frase que Gil diz na abertura de minha Irene, ao perceber que tem que recomeçar (Gil toca violão em todas as faixas do disco que gravei em Salvador depois da prisão, durante o confinamento, antes de irmos para fora do país). A tirada de Belchior era mais uma das referências irônicas que ele fazia ao tropicalismo. Tinha uma beleza poética imensa, como muitos dos versos de suas canções. A chegada à cena do “pessoal do Ceará” teve como uma de suas marcas a intenção de exibir confronto com os tropicalistas. Sugeriam que nós, os baianos, já representávamos o estabelecido, o velho, enquanto eles seriam o novo e a verdadeira rebeldia. Me parecia uma interessante reação ao habitual “tudo amiguinho, tudo certo”. No estilo de Belchior, soava justo. O tropicalismo se opôs à bossa nova louvando João, Jobim e Lyra. A bossa nova se opôs à bossa velha louvando Caymmi, Ary e Bide & Marçal. O pessoal do Ceará queria opor-se mesmo. Não chegava a isso e a recusa à louvação teria ficado vazia não fosse o talento e a personalidade de Belchior. O belo “Pavão” (Pavão Misterioso) de Ednardo era psicodélico e nordestinista. Ou seja: nada que o tropicalismo já não tivesse sido. Fagner era, quanto a todas essas questões, indefinido. Belchior esboçava um estilo antisixties, sugeria uma volta aos fifties como prefiguração os eighties.
Eu amava (e amo) Mucuripe. A frase musical que sustenta o verso “Vida, vento, vela levame daqui” é tão bela e adequada que dois dos maiores cantores do Brasil não conseguiram chegar à sua altura. Mas Mucuripe era uma canção “clássica”, atemporal. Ela trouxera os cearenses ao reconhecimento público, mas não representava ruptura. As músicas que Belchior assinou sozinho fizeram isso. Todas as citações a canções nossas que estavam em trechos de canções de Belchior me agradavam por estarem dentro de um timbre criativo sempre rico e instigante. Muitas entrevistas de Fagner desmereciam a força estética que era evidente em Mucuripe e em Belchior. Como Nossos Pais é uma das melhores interpretações de Elis. Também Velha Roupa Colorida é algo coeso e forte. Mas tudo isso ficava mais interessante ainda quando na voz do autor. É que a escrita em si, o material que ele apresentava, era de boa qualidade. E o som da sua voz, reiterado por sua figura, dizia o que ele queria dizer.
Seria gozado ouvir, em Apenas um Rapaz latino Americano, um “nada é divino, nada é maravilhoso”, como se a frase do “antigo compositor baiano” lembrada por quem canta já não fosse amargamente autoirônica quando foi inserida no retrato cubista de uma passeata de protesto contra a ditadura militar e não precedesse o refrão “É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte” mas as dubiedades de Belchior são deliberadamente desorientadoras e estão ali mais para marcar a passagem do tempo e anunciar novos ventos de estilo.
Quando as músicas fizeram sucesso e os discos venderam, Belchior aparecia nas festas ao lado de André Midani usando ternos finos, fumando charutos caros e falando na cultura da “Rive Gauche”. Depois, as Paralelas enchiam o ar das cidades. Eu próprio (que já chorara com Como Nossos Pais num teatro em São Paulo, vendo Elis) chorava no carro. O confronto que lhe pareceu necessário vinha eivado de amor. E não apenas amor transmutado em ressentimento. Não é por acaso que Belchior é lembrado e louvado por gerações sucessivas. Suas canções não são das que morrem. Ele prefigurou os anos 80 em termos globais e se instalou na memória profunda da história da criação de música popular no Brasil. As pessoas que enchiam os teatros a cada reaparição do bardo cearense entendem o sentido dessa história.
O UMBIGO É O MUNDO
Ao contrário de muitos, o narcisismo de Caetano Veloso não me incomoda. E, definitivamente, não sou daqueles que acreditam que Caetano Veloso comete mais erros que acertos. Aliás, frequentemente os erros de Caetano me interessam mais do que acertos já conhecidos de antemão. São erros mais essenciais, por assim dizer. Como bem disse o querido mestre Alcides Vilaça, “o ego do Caetano não é maior do que o de seus habituais detratores: é apenas muitíssimo mais bem sucedido”. De fato, a diferença parece ser antes de tudo, de grau: o narcisismo de Caetano chega a resultados brilhantes, ao passo que o entorno, também pautado pelo típico narcisismo tupiniquim (jornalistas, crítica cultural, tribunal do Facebook, etc.), chafurda na mediocridade.
Longe de ser só veleidade (embora também a envolva), o narcisismo de Caetano é, sobretudo, método. De fato, seu ego “(re)organiza o movimento” e o carnaval em torno de seu próprio umbigo, mas o processo não faz a realidade exterior desaparecer, sufocada por um subjetivismo redutor (embora frequentemente obscureça os limites entre visão crítica, auto-promoção, e veleidade). Não existe uma só canção de Caetano (ou mesmo regravações), por mais particularizada e subjetiva que aparente ser, que não traga algum posicionamento e reflexão sobre o mundo. O mundo, reduzido as dimensões do próprio corpo, se torna a um só tempo performance e objeto de reflexão estética. Ao invés de ser um modo de fuga do real, seu narcisismo é o modo mesmo de enfrentamento do mundo, que o coloca no centro do furacão.
Não por acaso, Verdade Tropical (narcisista desde o título, com essa “Verdade” arrogantemente maiúscula), um dos mais brilhantes livros de crítica cultural já publicados no Brasil, assume a forma de relato biográfico. Uma “biografia de formação”, em que interessam menos os dados e curiosidades sobre a vida do autor do que os desdobramentos de algumas ideias-chave da vida cultural do país nos anos 1960, tratadas não enquanto questões conceituais, mas enquanto experiências de vida, e que encantou (ainda que de forma tensa) Roberto Schwarz, outro de nossos grandes intérpretes, do campo oposto, por assim dizer. A concentração de Caetano no eu é o modo mesmo dele encontrar-se com o mundo, e não é por outro caminho que ele se torna um dos únicos “medalhões” da MPB a dialogar e influenciar a novíssima geração “MPB”. Trata-se a um só tempo de um movimento de autopromoção, uma forma de se colocar sempre no centro dos acontecimentos (mesmo quando não é exatamente o caso), e um método que possibilita miradas críticas reveladoras e soluções estéticas brilhantes.
Seu narcisismo, portanto, não é um problema em si. Ou melhor, só se torna um problema quando o resultado não dá certo, seja por preguiça, má-vontade ou desconhecimento não assumido. É precisamente esse o caso de alguns momentos de seu texto recente sobre Belchior, no qual traça também breves comentários sobre outros integrantes do Pessoal do Ceará.
O PESSOAL DO CEARÁ
Boa parte do texto, como era de se esperar, é sobre o próprio Caetano, o que faz parte de seu método. O resultado é rico tanto naquilo que afirma quanto em seus sugestivos silêncios. Seu objetivo é mostrar a riqueza e originalidade de Belchior, especialmente a partir de dois aspectos: sua superioridade frente a outros colegas de geração, e a riqueza de seu diálogo com o tropicalismo (e aqui cabe uma primeira questão: terá sido, de fato, um diálogo? Caetano Veloso em algum momento dialogou, de fato, com Belchior em sua obra?). A meu ver, os dois pontos apresentam problemas.
Com relação ao primeiro ponto, é notória a má vontade de Caetano com o chamado “Pessoal do Ceará”, que não vem de hoje e tem várias motivações (a centralização dos baianos com relação a história do tropicalismo e seus “desdobramentos”, a birra pessoal com Fagner, que resulta em julgamentos estéticos apressados, a postura diretamente provocadora e pouco reverente dos cearenses com o tropicalismo), todas relacionadas com o jogo de proximidade e diferença. No texto fica clara essa má vontade quando, para mostrar que o Pessoal do Ceará não conseguiu alcançar a originalidade que procurava, o Pavão Misterioso de Ednardo é reduzido à mera cópia requentada do que o tropicalismo já havia feito. “O belo “Pavão” (Pavão Misterioso) de Ednardo era psicodélico e nordestinista. Ou seja: nada que o tropicalismo já não tivesse sido”. Ora psicodelia e nordestinidade é a marca de boa parte da produção brasileira dos anos 1970, o que de fato tem uma relação direta (e abertamente declarada) com o sucesso nacional dos tropicalistas. Mas será que esse dado bastante genérico é suficiente para apresentar o Pessoal do Ceará como mera continuidade do tropicalismo? E quanto a todos os outros artistas bastante originais que iniciam suas obras partindo dessa mesma premissa, como Alceu Valença, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Ednardo, Raul Seixas, Fagner, etc., para não falar nos desdobramentos nos anos 1990, como o manguebeat? A característica levantada por Caetano é demasiado genérica para servir como argumento a favor da pouca originalidade do pavão de Ednardo que, a propósito, nunca confirmou esse desejo apontado por Caetano, de apresentar uma ruptura em relação aos tropicalistas.
Sobre Fagner, Caetano é ainda mais lacônico: “Fagner era, quanto a todas essas questões, indefinido”. Fagner é malandramente retirado da questão, ainda que a primeira música de seu primeiro álbum seja justamente uma versão psicodélica de uma gravação de Luis Gonzaga, seguida de uma versão particular de um sucesso de Roberto Carlos. De todo modo, Caetano, mestre em traçar genealogias, não coloca Fagner como filho do tropicalismo, como se não quisesse assumir a paternidade. De todo modo, o texto nos oferece indicações claras que sua obra também não apresenta grandes novidades. Por um lado, sabemos que apenas Belchior conseguiu promover rupturas significativas com os tropicalistas (sem as quais a “recusa a louvação teria ficado vazia”). Presume-se, pois, a falta de originalidade de Fagner, ainda que essa não seja assumida diretamente (note-se outra vez a sagacidade malandra da estratégia, pois Caetano sabe que o cara gravou com Hermeto, tem parceria com Ferreira Gullar, tem uma produção de peso nos anos setenta, tem sucesso popular de verdade – sucesso mesmo, padrão Roberto Carlos, e não padrão MPB – etc.). Por outro lado, ainda que Mucuripe seja uma bela canção, não deixa de ser MPB “clássica” e, segundo Caetano, não representa ruptura significativa. Fagner irá ainda reaparecer mais a frente no texto, de forma estranha, como aquele que não reconhece a força estética nem de Mucuripe (ainda que por diversas vezes Fagner, de quem Caetano declaradamente não gosta, se refira a ela como sua composição mais importante, como se Caetano quisesse reforçar que a canção pertence mais a Belchior do que a Fagner) nem de Belchior (ainda que ambos tenham sido parceiros em inúmeras canções e projetos, mesmo sem manter boas relações pessoais)[1].
Ou seja, em seu elogio a originalidade de Belchior, Caetano apresenta uma evidente má-vontade para com o Pessoal do Ceará, o que, aliás, não é nenhuma novidade. Além do conhecidíssimo desafeto com Fagner (que o leva a ter uma interpretação bastante empobrecedora de sua obra), até onde sei Caetano não embarcou no diálogo proposto por Belchior em suas canções. Quando este ainda vivia, Caetano deixou o bardo anarquista falando sozinho.
DIÁLOGOS (?) TROPICALISTAS (?)
Em outros momentos do texto, contudo, Caetano demonstra seu olhar apurado para aspectos importantes da obra de Belchior quando, por exemplo, observa que as versões autorais de suas músicas são superiores as de Elis Regina, em razão de certa adequação entre a potência das letras, o som de sua voz e a sua “figura” (faltou ressaltar, a meu ver, o acerto melódico, que reforça a proximidade com a fala sem perder o teor passional, o que chama ainda mais atenção para o timbre anasalado característico do cantor, conferindo maior “verdade” e singularidade a performance – lição aprendida de Bob Dylan). Ou ao final do texto, quando reconhece que as polêmicas com o tropicalismo vinham sempre “eivadas de amor”, e não eram marcadas por ressentimento. De fato, Belchior polemizava com os tropicalistas e outros medalhões da MPB movido não por ódio, ou inveja, mas sobretudo por admiração. Entretanto, é preciso reconhecer que a afirmação de Caetano, ainda que verdadeira em termos mais profundos, oculta um importante deslocamento ideológico na superfície, discernível quando consideramos o movimento total do texto.
Todo o elogio feito por Caetano em seu texto é construído a partir de dois movimentos fundamentais: 1) desvalorização da originalidade da obra do “Pessoal do Ceará” e 2) minimização da importância da polêmica de Belchior com o tropicalismo. Ou em termos mais rasteiros: alfinetar Fagner mais uma vez e mostrar que as críticas de Belchior ao Tropicalismo, no fundo, não eram tão graves ou importantes assim. Elas eram importantes na medida em que ajudavam a compor um estilo próprio, servindo como elemento de auto-afirmação do artista mas, no fundo, os tropicalistas não representavam um campo tão distante assim. Ou seja, se a obra de Belchior parece interessante aos olhos de Caetano justamente porque rompia com o habitual “tudo amiguinho, tudo certo” que reinava no campo artístico dos anos 1970, o movimento de seu texto caminha no sentido oposto, minimizando eventuais diferenças e deixando elas por elas.
Note-se que, como acontece em quase todo texto de Caetano, esse é também atravessado por ambiguidades fundamentais. Pois ainda que não negue a originalidade de Belchior (originalidade que não reconhece nos outros cearenses), afirmando-a ao longo de todo texto, ele procura diminuir a distância marcada pelo próprio Belchior, operando sutis deslocamentos ideológicos em alguns aspectos fundamentais. Um dos movimentos interessantes nesse sentido é a estranha interpretação que ele faz da originalidade geracional do artista: “Belchior esboçava um estilo anti-sixties, sugeria uma volta aos fifties como prefiguração os eighties”. Ora é fácil perceber o que falta a essa equação, sem o que a conta não fecha de forma alguma – a importância decisiva de Bob Dylan. Belchior não volta para os cinquenta deixando de lado os anos 1960, mas sim para o folk eletrificado de Dylan, sessentista até o talo.
E porque esse modelo desaparece da equação de Caetano? Seguindo suas interpretações mais recentes sobre a tal da linha evolutiva da música popular, que vai de João Gilberto à Anderson Silva, o baiano de Juazeiro teria cumprido no Brasil a mesma função que o bardo de Minessota assumiu na música norte americana. Como resultado, este teria sua importância reduzida no contexto brasileiro. De fato, para o tropicalismo, Bob Dylan diretamente importa pouco. Mas não se pode dizer o mesmo para uma série de nomes que surgiram na sequência, em especial Zé Ramalho e Belchior. Junte-se a isso outras diferenças fundamentais (Belchior é muito mais Cabral e Drummond do que o Oswald tropicalista ou o Mário da MPB, por exemplo), e uma genealogia mais complexa começa a ser firmada, atrapalhando o circuito perfeito da linha evolutiva. A Bossa Nova é foda, mas não resolve tudo. Não estou com isso sugerindo que a obra de Belchior segue um caminho absolutamente alternativo na música popular brasileira – ideia que não se sustenta, seja por si mesma, seja pelos diversos depoimentos do artista revelando suas proximidades. Mas a afirmação contínua e marcante dessa diferença na produção do compositor ao longo dos anos 1970 é um aspecto fundamental da construção de sua identidade, sem a qual grande parte de sua potência é perdida.
Ao final, Caetano apresenta algumas observações algo maldosas sobre o comportamento de Belchior, provavelmente mirando parte do público que considera Belchior um modelo de resistência anarquista alternativa, especialmente depois de sua morte: “quando as músicas fizeram sucesso e os discos venderam, Belchior aparecia nas festas ao lado de André Midani usando ternos finos, fumando charutos caros e falando na cultura da Rive Gauche”. As observações não são, evidentemente, casuais, e tem por objetivo demonstrar que a rebeldia do compositor diminuía à medida que o sucesso (e a grana?) aumentavam. Como se sua revolta e críticas aos “novos velhos” que “contam o vil metal” fosse mais uma questão de estilo e de retórico do que algo pra se levar a sério. Curiosamente Caetano, que no geral tem uma visão muito mais acurada que a média da crítica musical jornalística rasteira, parece seguir o mesmo senso comum dos que afirmavam que Belchior havia se vendido, algo que a esquerda cultural jamais perdoou. Contudo, por ser Caetano, ele inverte o sentido tradicional dessa crítica com a habilidade argumentativa de sempre: desse modo, aquilo que a critica superficial mais valorizava no artista (o tom polêmico e sua critica social ferina), seria na verdade o mais superficial de Belchior, pois o que verdadeiramente importa é seu apelo popular, o amor dos milhares que enchiam os teatros a cada reaparição. Nova alfinetada no público consumidor de classe média que organiza mensalmente saraus em homenagem ao Belchior, público esse que é o mesmo do próprio Caetano.
Independente do conteúdo de verdade ou falsidade dessa perspectiva (de fato, o sucesso de massas é um aspecto importante na carreira de Belchior), convém notar seu funcionamento ideológico: Belchior seria um grande nome da nossa música, a despeito das (falsas) polêmicas a que ele se dedicava, que são no máximo marcas de estilo, veleidades sem grande importância, e muitas vezes equivocadas. Colocadas nesses termos, as questões levantadas em suas canções não precisam ser respondidas, ainda que toquem em pontos decisivos, como a institucionalização das reivindicações da contracultura, encarnada na transformação da geração de ouro da MPB em um punhado de medalhões. Ainda que a própria obra de Belchior possa ser enquadrada nessa mesma crítica, a questão deve ser descartada, considerada sem importância? De todo modo, o diálogo que não ocorreu em vida também não acontece após sua morte, a despeito da homenagem.
Mas o movimento ideológico decisivo do texto está na interpretação que Caetano faz da presença de seus versos em Apenas um Rapaz Latino Americano. Cabe aqui a citação mais longa:
“Seria gozado ouvir, em Apenas um Rapaz latino-Americano, um “nada é divino, nada é maravilhoso”, como se a frase do “antigo compositor baiano” lembrada por quem canta já não fosse amargamente auto-irônica quando foi inserida no retrato cubista de uma passeata de protesto contra a ditadura militar – e não precedesse o refrão “É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte” – mas as dubiedades de Belchior são deliberadamente desorientadoras e estão ali mais para marcar a passagem do tempo e anunciar novos ventos de estilo”.
Caetano aponta um equívoco de interpretação por parte de Belchior, que não teria compreendido o caráter ambíguo dos versos, tomando como inequivocamente positivo (“tudo é divino \ tudo é maravilhoso”) o que é claramente irônico. Nesse sentido, poderíamos estender a crítica para outra citação famosa, em Fotografia 3×4: “Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua”. A citação de Alegria, Alegria também ignora que o sol (o real ou o das bancas de revista?) enchem o sujeito não apenas de alegria, mas também de preguiça, e que a canção tem um sentido a um só tempo negativo e positivo. Entretanto, o que vemos aqui é o exato oposto, pois é Caetano quem deliberadamente ignora o modo de funcionamento das citações no processo criativo de Belchior. Essas não assumem a forma de reverências estáticas, meras homenagens, mas são formas complexas de questionamento e ressignificação. Além do que, dada a reconhecida capacidade leitora de Belchior e sua familiaridade com o universo poético em geral, seria muito simplista acreditar que ele tenha deixado escapar uma ambiguidade que, de todo modo, fica claramente explícita na canção. Portanto, se ele retirou a ambiguidade da letra não foi por ter deixado escapar algo do sentido geral, mas porque sua intenção foi exatamente essa. Não existe “erro” de interpretação, mas um deslocamento interpretativo, no mais, repleto de ironia.
Belchior não está criticando o que Caetano Veloso quis efetivamente dizer na letra. Seu método consiste em jogar o próprio texto contra seu autor, descentralizando-o. A voz\identidade de Caetano é deliberadamente deslocada do centro de sentido dos seus versos. Ali, na relação proposta por Belchior, não é Caetano quem organiza o movimento (e tampouco Belchior). O texto está vivo, e sua perspectiva é apenas uma entre outras. Passado, presente e futuro são deslocados, jogados uns contra os outros. Belchior constrói sua linguagem por meio desses sucessivos deslocamentos, que descentralizam o texto “original” e problematizam o estabelecimento de um lugar único de verdade. O argumento de Caetano pretende recolocar as coisas em seu devido lugar, recolocando-se na posição de produtor da verdade do texto, reduzindo uma das provocações mais famosas de Belchior a um equívoco de interpretação. A resposta de Belchior diante do “mas não foi isso que eu disse” de Caetano poderia ser: “eu sei, e é justamente esse o problema”. Belchior não está criticando aquilo que Caetano quis dizer, e sim utilizando os versos contra o próprio autor, mostrando que o próprio movimento tropicalista (seus integrantes) perdeu sua força crítica, passando a compor o coro dos contentes, a contar o vil metal. Com isso, o próprio sentido original positivo dos versos é internamente desconstruído e problematizado. Ao contrário do que diz Caetano, os versos não estão ali apenas para marcar a passagem do tempo, e sim para assinalar o que, nesse novo tempo, foi perdido, ou traído.
O tropicalismo é tradicionalmente reconhecido como o movimento que marcou uma abertura radical para todas as linguagens, deslocando as tentativas necessariamente redutoras e castradoras de fixação e estabelecimento de lugares de verdade (o verdadeiramente nacional, o genuinamente popular, o demoníaco mercado, etc.). O movimento que definitivamente embaralhou e dinamizou as categorizações estanques e inócuas no campo da música popular, tornando-as vivas e problemáticas. Contudo, sabe-se que toda estrutura, por mais inclusiva que seja, é formada a partir daquilo que exclui e silencia, vazio fundamental a partir de onde seus pares de oposição são organizados. Já passou da hora de reconhecermos tudo aquilo que o tropicalismo teve de silenciar para se constituir enquanto espaço de inclusão. O quanto tais exclusões determinam sua constituição e quais os custos dessa operação. Sem dúvida, Belchior gostaria disso.
[1] “Belchior sumiu mesmo, porque o Belchior é outro temperamento. Ele deu as costas pra mim. Passei a ser uma ameaça para ele, mas não era nada disso. Eu sempre respeitei o Belchior. Tenho o maior orgulho de dizer que a minha melhor música, a música mais marcante da minha vida é “Mucuripe”. E é com Belchior. As pessoas me perguntam: cadê o Belchior? Por que nego pensa que eu sou amigo do Belchior. Eu não sou amigo do Belchior. Sou um cara que respeita o Belchior profundamente. […] Belchior sempre foi importante na minha vida, mas não fui importante na vida dele. Lamento. (Fagner http://screamyell.com.br/site/2016/11/01/entrevista-fagner/ Entrevista Scream & Yell)
Finalmente um bom (ótimo) texto sobre a relação estética Belchior/Caetano. Obrigada!