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Dossiê 2024 por seus discos (4/4): Tassia Reis, Mocofaia, Josiel Konrad, João Bosco, Dona Onete

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Tássia Reis: Topo da minha cabeça (SP)

Ancestralidade, autoconhecimento, resistência. Palavras que explicam menos do que direcionam: a negritude apaziguada, colocada no lugar “certo”. Ou seja, ao lado dos progressistas que narram a história a partir de si. Domesticadas, as palavras se pervertem: autoconhecimento é narcisismo; resistir é se livrar da concorrência; ancestralidade é fetichismo.

(Outra forma de ler essa presença ostensiva da ancestralidade entre nós é a certeza inconsciente de que, a rigor, já estamos todos mortos).

Nada disso é o disco de Tássia Reis – mas são esses os signos mobilizados para domesticá-lo.

“Topo da minha cabeça” poderia se chamar Tássia Reis meet the samba, pois segue na trilha do excelente projeto em que a artista canta músicas de Alcione, enfatizando a dimensão soul e R&B de seu repertório. Mas esse encontro não resulta em um modelo previsível de fusão. É outro paradigma de aterramento, que evoca o R&B de Alcione, o jazz de Elza Soares, o afro-soul de Margareth Menezes e o groove de terreiro da matriarca Clementina. O encontro é com o samba, mas a trilha é a do negro em estado de diáspora.

Uma das marcas coloniais no corpo negro é essa experiência de desagregação entre corpo e cabeça, identificada por Du Bois. O groove é o dispositivo que permite a Tássia reconectar seu corpo a uma cabeça regida pelas entidades arquitetas do samba – Jovelina, Elza, Ivone, Leci. Uma reconexão que não é fácil de alcançar: afinal, onde fica o topo em um corpo virado do avesso pela atualização constante da fratura colonial?

É nesse conflito que sua música se instala. Sua busca é por comunidade, mas seu ponto de partida não é alguém a correr atrás do amado no aeroporto, e sim os becos e vielas por onde futuros artilheiros negros são destituídos de vidas e sonhos. Uma posição conflituosa, que faz da linguagem estratégia terrorista de não-captura.

Esquecer que o negro resiste. Voltar à materialidade do som. Penetrar na noite das palavras ainda “ermas de melodia e conceito”. Palavras úmidas de sono. Estranhar o texto, ou ao que nele é todo angústia.

Fazer do dicionário, ancestral.

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Josiel Konrad: Boca no trombone – RJ (2023) 

Muito já se comentou sobre o quanto o disco Boca no Trombone (2023) realiza uma fusão incomum entre o jazz e o funk — como um desejo de Josiel Konrad de se reconectar com o som que ouvia na Baixada quando criança. A leitura, decerto, não é falsa. Mas, rigorosamente, apenas uma única faixa do disco – Boca nº 0 – explora essa fusão. Depois dela, o funk desaparece por completo de seu horizonte estético. Como, então, definir o disco todo a partir disso?

Se palavras são também formas de desdizer, do que estamos falando ao falarmos sobre Boca no Trombone?

O diálogo entre funk e jazz não é o único apresentado por Konrad. Boca no Trombone revela, de fato, um forte desejo de reconexão — seja de Josiel com sua comunidade, da música com sua identidade política enquanto homem negro, ou de um brasileiro no exterior com a própria cultura. Dentre todos, contudo, o tensionamento que me parece decisivo é a relação entre jazz e canção. O jazz alimenta sua linguagem, mas não a domina integralmente, ainda que por vezes subverta a dimensão prosódica das canções, instaurando uma dupla dimensão na voz. O que não deixa de ser um aspecto político a seu modo.

“Já senti muito medo de falar sobre racismo, e o álbum me fez perder esse medo”. A ênfase aqui está no verbo “falar”. Konrad sente uma urgência intensa de dizer, respondendo ao que reconhece como as demandas próprias de seu tempo, que são também as suas. Mais do que responder, ele as deseja expressar por todos os poros, a tal ponto e com tanta fome que sua voz nos aparece em uma espécie de duplo cantar: ora é ele quem fala, ora o trombone.

Duplo dizer que é também a dupla inscrição negra numa modernidade antinegra periférica – modos de uma gente que tem pressa e fome. Pode o trombone dizer a linguagem que nos falta?

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Mocofaia (BA)

Sonoridades africanas de distantes diásporas: Mulatu Astake, Salif Keits, Ali Farka Touré. Aos ouvidos brasileiros, o Unheimlich. Uma sonoridade que beira o experimento à medida que finca pé em solo sagrado, como uma modernidade que se inaugura desde um outro tempo. 

Mocofaia é esse estranho familiar e íntimo, gambiarra incrustrada em um outro tipo sagrado de vínculo com o que flutua sobre o profano solo pátrio. O cante a palo seco, do que se apreende como pedra e lágrima, enquanto dançamos distraídos.

O disco segue na trilha do extraordinário Aguidavi do Jeje, por desvios um pouco menos barrocos — dado o caráter, digamos, mais jazzisticamente compacto do conjunto. O trabalho de criação, bastante coeso, é coletivo, mas seu centro pulsante está na polirritmia encabeçada pela potência percussiva das “pretitudes sônicas” (GG Albuquerque) de Luizinho do Jejê, Marcelo Galter e Sylvio Fraga.

Búzio e brasa: o sagrado segredo de uma música que se arquiteta pelo ritmo e põe o corpo em compasso com o invisível, como quem compartilha de seus segredos.

Onde queres ordem, feitiçaria.

Aprender a ver com ouvidos livres os projetos interrompidos da música popular. As pistas estão todas lá, como ecos e fantasias. Nana Vasconcelos, João Donato, Gilberto Gil, Moacir Santos, Letieres Leite. Se tivesse que escolher um disco, Gil e Jorge, de 1975. Seu fundamento (i)material não cabe na linha evolutiva da MPB, posto ser rio que corre desde o avesso, como macaco que acende a luz do primeiro cativeiro. Ainda assim, o resultado é mais contido que a implosão do Aguidavi, como se entidades samba jazzísticas nos conduzissem por terreiros mais familiares. Afinal, mocofaia não é bagunça.

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João Bosco: Boca cheia de frutos (RJ)

João Bosco sabe como ninguém aclimatar canções munido “apenas” de sua voz e violão. Um movimento aprendido de outro João, mas em sentido inverso. João Gilberto conduzia as canções para seu universo intimista particular, como em um laboratório. João Bosco, por outro lado, direciona as canções para o palco (i.e., seu violão), dramatizando-as.  

É esse aspecto de dramatização que permite a Bosco fazer um disco de MPB nos dias de hoje. Ou seja, um disco que evoque a existência de uma entidade chamada Brasil, e que só existe no conjunto de canções que o disco organiza, como um samba que só existisse em sonho.

Como em uma espécie de delírio concreto, diversas personagens emergem do disco, como Evocações. Algumas, mais pronunciadas, como Aldir – eterna ausência\presença – e Clementina de Jesus, que conduz João Bosco ao lado mais ancestral do samba. Mas são muitas as entidades inscritas em seu violão: Candeia, Caymmi, Tom, Chico, João, Kopenawa, Tanaru. Cada uma a traçar rotas e (im)possibilidades.  

Nos momentos de maior força, as evocações dramatizadas pelo violão\palco de João ganham densidade e presença. Invocam-se os evocados e o que foi drama se incorpora. Momentos em que João trata a herança de Clementina com rigor e virtuosismo, honrando o radicalismo de rainha Quelé.

Digo evocar porque o universo do disco está em extinção, como dinossauros na Candelária: a terra está por um fio, o amor pra acabar, o oco buraco da história. O mundo e o ser em ruínas. Mas o violão insiste…  

Boca cheia de frutos é antessala de formiga: gurufim pra enganar a morte. Tal como a alta nobreza da música popular, na qual a genialidade de João se inscreve.

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Dona Onete: Bagaceira  (PA)

O que é bagaceira? Termo de difícil definição, bagaceira é, ao mesmo tempo, o melhor e o pior momento. Aquele intervalo infinitesimal de plenitude em que a cachaça te humilha, mas não com força o suficiente pra te derrubar.

Até onde alcanço, foi Siba quem ofereceu sua melhor definição, ao pensar no império por excelência da bagaceira: o carnaval de Olinda. Dormir na calçada, abraçado a um cachorro, enquanto uma alma sebosa tenta te assaltar e se dá mal, porque você não tem nem um real no bolso.

Situação terrível, não é? Pois bem: bagaceira é justamente o estado de ser em que essa cena deplorável se transmuta no auge da plenitude e felicidade.

Impossível de descrever, mas não de sentir: é a esse lugar que Dona Onete nos conduz com sua poética sensorial. Suas letras e melodias não se limitam a narrar festas ou evocar paisagens amazônicas — elas encarnam essas experiências até que o discurso se transforme em canto, vento e vertigem. Garça, urubu, rato e pitiú são signos de classe e, ao mesmo tempo, materialidade significante, por meio de onomatopeias que se tornam, elas próprias, fundamento rítmico da festa. Um dom partilhado por alguns dos nossos grandes — Alceu, Caymmi, Jackson — que, mais do que contar histórias, oferecem verdadeiras experiências tátil-auditivas. Cada elemento da linguagem de Dona Onete é cuidadosamente moldado para participar da festa e, ao mesmo tempo, inventar musicalmente o Pará.

Como no funk, tudo em sua linguagem obedece ao império do corpo: a especificidade da semântica paraense, as rimas e os jogos rítmicos internos, a repetição encantatória até o limite da dissolução, o êxtase significante. Garça, urubu, rato e pitiú são, ao mesmo tempo, signos de classe e materialidade vibrante, onomatopeias que se tornam fundamento rítmico da festa. Psicodelia tropical que nos conecta ao universo da linguagem afro-indígena com a malemolência voluptuosa de um carimbó chamegado. Diz a lenda que Dona Onete começou sua carreira em Igarapé-Miri, ainda menina, cantando para os botos. Seu cantar, contudo, inverte o mito: eram eles — os bichos — que se deixavam seduzir por ela.

Alguém duvida?

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Acauam

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