
I
O show da Lady Gaga em Copacabana foi mesmo esse sucesso todo que estão dizendo por aí. Uma delícia: gostoso e tranquilo, na medida do possível. Foi bonito ver milhões de pessoas — inclusive famílias inteiras — cantando emocionadas todas as músicas. Dava pra sentir que era muito mais que um show: era a celebração de algo muito importante dentro de si.
Senti algo parecido num show do Fundo de Quintal, recentemente — que, não por acaso, foi também gratuito: o dinheiro perverte a pureza do encantamento.
Um espetáculo grandioso, operístico (porque choras, Wagner?), que valeu a pena acompanhar da praia — ainda que, por vezes, parecesse que eu estivesse assistindo a um DVD pirata, porque no telão o som estava dessincronizado do começo ao fim.
Isso a Globo não mostra.
Ele foi tudo isso — e tudo isso, de fato, ele foi. Por outro lado, há muita coisa que ele NÃO foi. Entre elas: um acontecimento político radical. E tá tudo bem — little monsters não precisam (nem desejam) ser tudo. Mas tem uma galera de esquerda que PRECISA que o show represente também algum tipo de Acontecimento político radical, uma espécie de vitória (moral? simbólica? econômica?) para o campo progressista — como se, de algum modo, a esquerda pudesse se levantar junto com Gaga no último ato de sua ópera.
Papa Francisco morreu para ressuscitar, doze dias depois, em Copacabana. Todo purpurinado, com aquele sorriso encantador. Diga-se de passagem: é exatamente esse o roteiro de O Conclave. O que só prova que delírios esquerdistas não são um privilégio nacional.

Terreiro de libertação. Gesto coletivo de purificação. Corpos dissidentes.
Leio essa profusão de adjetivos e fico me perguntando se assistimos ao mesmo show. “A história caminha para as estruturas se abrirem”. É mesmo? E que horas foi isso? Antes ou depois de “Bad Romance”? Até o pobre do Marx aparece para dar concretude ao delírio de uma “nova forma de se fazer política”.
O tal do “terreiro de libertação”, particularmente, me irrita muito. Nosso grupo andou por horas depois do show sem encontrar uma mísera JBL funcionando na praia. Tudo o que havia eram festas privadas e aceitação conformada do fim. Como é que a rua se transforma em “terreiro” sem música, sem batuque e sem tambor?
Não por acaso o texto foi compartilhado no perfil do Kleber Mendonça: de fato, é impossível dizer se o sujeito está falando do show, ou descrevendo uma cena de Bacurau.
Sim, houve muita celebração da diversidade — no palco e fora dele. Mas, ao menor sinal de luta de classes, a coisa toda teria desandado. Se houvesse política ali, com P maiúsculo, a playboyzada de Copacabana, Dudu Paes e a polícia estariam em pânico neste momento — e não satisfeitos com o nosso bom comportamento, também conhecido como “desistência”.
Não se trata de uma crítica ao público. Muito menos ao show, que foi incrível dentro daquilo a que se propõe. Mas uma crítica ao que parte da esquerda tem chamado de política — no geral, formas mais ou menos explícitas de ADESÃO.

Leio a reportagem sobre a morte lenta das madrugadas urbanas — uma tendência geral em grandes cidades como São Paulo, Nova York e Berlim. Para a geração Z, a madrugada perdeu seu glamour, enquanto igrejas e academias se tornam espaços de sociabilidade cada vez mais atraentes. Uma geração que bebe menos, trabalha mais, ganha pouco, malha muito e se entope de remédio controlado.
Sobretudo, o medo: permanente, espesso, corrompendo a pureza genuína de todas as coisas. Nessas cidades, é a própria ideia de boemia que parece em risco. Não por “autocuidado”, mas porque o Capitalismo nos odeia a esse ponto.
Como é que corpos esmagados pelo neoliberalismo se tornam, do dia para a noite, uma “força de resistência e subversão”? Aliás, não é exatamente sobre isso que canta a própria Lady Gaga: a cultura pop como um sistema que lucra com nosso adoecimento? Não seríamos dois milhões de sujeitos adoecidos e monstruosos?
Parte da beleza do espetáculo em Copacabana está, inclusive, nessa dor coletiva que, em uníssono, é capaz de “balançar o chão da praça”.
Leio também os comentários. Um rapaz paraense diz que aquela reportagem era coisa de paulista, porque em Belém as aparelhagens tocavam até altas horas. “Me venderam um SP que nunca dorme, mas isso é passado, agora é a cidade que mais dorme nos rolê!”. Verdades sendo ditas…
De fato, há uma série de recortes importantes a serem considerados: o impacto do capital nas grandes cidades, diferenças regionais, questões elementares de raça e gênero. E, ao menos, um aspecto geracional determinante: a vitória da ética cristã do trabalho em uma sociedade de desempregados. Corpos limpos, malhados, dopados e funcionais. Antidionisíacos.
O público de João Gomes no interior do Nordeste, por exemplo, é muito mais insubmisso do que o de Copacabana. Mulheres rasgando a camisa ao som de “Meu pedaço de pecado”; sexo ao ar livre; escatologias de todo tipo; gente se passando no débito e no crédito. Êxtase total, pé na jaca.
Exagero: falo especificamente do famoso show de João Gomes em Mossoró, logo após a pandemia. Mas sabemos que o mesmo acontece em outros tipos de festa, especialmente naquelas onde o desmantelo reina soberano.
Novamente, sem juízo de valor aqui. Mas o fato é que o público mais politicamente conservador de João Gomes está para Woodstock assim como o público progressista de Lady Gaga está para um show do Coldplay. E tudo se resume a entender quando foi que, para a esquerda, Woodstock deixou de ser uma referência de politização artística, sendo substituído por manuais de bom comportamento e civilidade dócil?
Provavelmente na mesma época em que tacar o foda-se e invadir o Congresso se tornou estratégia da direita, enquanto nós seguimos batendo cabeça para defender as quatro linhas de uma constituição que jamais nos representou.
As utopias de esquerda foram reduzidas ao desejo de manter o capitalismo em ordem, enquanto à direita interessa sua aceleração enquanto agente do caos. Nada menos que o fim do mundo, portanto, como forma de confirmar o caráter factual do livro do apocalipse. Aliás, toda a luta política da direita se resume a transformar metáforas em realidade, por mais absurdas que pareçam. Se pudessem, já teriam achatado a Terra.
O grande conflito político do nosso tempo: o triste encontro da Liga das Senhoras Católicas com o valentão da escola, que faz bullyings cada vez mais extremos até sua vítima cometer suicídio. Sem consequências: afinal, tudo não passou de uma grande brincadeira, passível de perdão e anistia.
A libido anda tão em baixa que a principal justificativa para o sucesso do evento precisa se dar em âmbito econômico. A vinda de Lady Gaga para o Brasil foi ótima para movimentar a economia, assim como é ótimo que frequentemos a academia para movimentar o nosso corpo. Pouco importa a experiência propriamente dita: tudo se resume ao fato de que muita gente ali conseguiu, mais uma vez, trabalhar. O corpo, destituído de desejo e alma, vale por sua condição de força de trabalho.
Quem vai lutar pelo fim da escala 6 x 1 dentro de nós?