Internet

A pegada (soca fofo) do vaqueiro: sobre as versões hipster dos sucessos populares

Maeana 2

PARTE I

I.

E eis que, inadvertidamente, me pego a ouvir um disco em que a intérprete se propõe a reunir, sob um mesmo horizonte estético\sentimental, dois artistas bem diferentes entre si. João Gilberto, o pai da bossa, e João Gomes, o rei do piseiro. J.C., ambos.

E quanto mais eu os ouvia, mais minha cabeça, obstinadamente, repetia:

“Essa é pra quem é preconceituoso e acha que branco não pode cantar piseiro”

(e isso porque João Gomes nem é preto)

II.

Parto desse disco, mas miro além no alvo. A estratégia, velha conhecida, almeja o encontro entre dois mundos – piseiro e bossa nova, popular e refinado, morro e asfalto. Metáforas polarizadas em esforço de mútuo desvelamento. Revelar aos fãs de Jobim que as melodias de Gomes são belas, e aos fãs de piseiro que bossa nova não é coisa de playboy metido a besta. No processo – por que não? – afirmar-se enquanto artista democrática(o), cool, destituído de preconceitos. 

Funcionando, esse casamento poderia criar um evento encantador, disruptivo e, por vezes, inusitado – Art Popular transando pagode e música flamenca em Vestida de Doida. Domesticada, porém, a estratégia de choque (modernista & tropicalista & vanguardista) se perverte em gestão neoliberal do horror. A cultura é do encontro (samba & futebol & carnaval), mas o que se troca não são beijos (racismo & encarceramento & genocídio). Capitalismo de Choque, Pablo Marçal feelings: lucre enquanto eles morrem. Pode não parecer à primeira vista, pois a máscara de delicadeza nos distrai, mas o ruído de fundo de cada canção do disco mal encobre o som dos tiros.

III.

Artistas constroem sua identidade enquanto potência disruptiva: mulher & negra & mãe & periférica. Ao que o mercado, rapidamente, traduz: empreendedora & marketeira & produtora & influencer. A sobreposição de identidades transformada em mecanismo de gestão de um eu reduzido ao mínimo, apenas o suficiente para não morrer de fome durante o expediente. Trabalhar quatro vezes mais, receber quatro vezes menos, enquanto a cartilha liberal descreve derrotas como oportunidades.

Às vezes o ódio é a única forma tolerável de amor.

IV

Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores. Artistas são trabalhadores.

Computadores fazem arte. Artistas perdem dinheiro.  

Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento, Maria Bethânia: do popular ao erudito e de volta ao popular. Ouçamos Serrado, de Djavan. A genialidade com que o samba migra para territórios mais jazzísticos e “sofisticados”, sem nunca deixar de pisar o terreiro de onde emerge. Eu sei / serei feliz de novo /Meu povo / deixa eu chorar com você. Padrão Steve Wonder de complexidade. Mas a coisa toda só funciona porque Djavan assume uma postura estética subversiva, de quem leva o popular verdadeiramente a sério e, por isso, precisa reinventar a própria linguagem que o formatou.

VI

Na proposta de levar João Gomes pra um role no condomínio, ao contrário, tudo soa artificialmente fácil. Piseiro e bossa nova nunca se encontram de fato, burocraticamente sobrepostos de forma esquemática, como em uma playlist preguiçosa do Spotify. Piseiro bossa lounge Hi Fi: Essa é a pegada (soca fofo) do vaqueiro. A noção abstrata de “refinamento”, menos artística que de classe, mantém no horizonte certa perspectiva de higienização. A sonoridade se torna mais cool e palatável, favorecendo a apreciação contemplativa dos sentidos em detrimento do corpo que dança.

Aparar as arestas para migrar de ambiente – da vaquejada pro apartamento da Paula Lavigne. Ao final, todos saem perdendo: o piseiro, destituído da dança, perde potência popular sem ganhar em complexidade. A bossa, destituída de gravidade, sacrifica o trabalho estético sem ganhar em popularidade.

VII

A primeira vez que ouvi João Gomes, acreditei estar escutando a voz de um senhor de meia-idade. Pelo timbre, obviamente, mas também pela sonoridade e temática das canções. Em tempos de funk e Tinder, JG canta sobre apresentar a namorada para os pais e sobre parecer-se com o avô. Seu piseiro traz uma pegada de forró de vaquejada, beirando o pé de serra, adornado por belas melodias destiladas por um canto curtido nos aboios de Serrita.

Coitados, porém, daqueles que, iludidos pela carinha de bom moço do rapaz, decidirem encarar um show do João Gomes porque “deve ser bem tranquilo”. A esses pobres desavisados, uma dica: antes de sair de casa digite “João Gomes em Mossoró” no google e veja a magia acontecer diante de seus olhos. Woodstock vai ficar parecendo um buffet infantil, e a pipoca do Kannário, um passeio com a família no domingo.

Isso porque a “pegada do vaqueiro” se constitui a partir de uma tensão fundamental. Seu apelo jovem deriva da valorização do passado, do reconhecimento da modernidade inscrita na tradição. Seu timbre de “coroa de buteco” soa ao mesmo tempo como casa de vô e novidade de mercado; a batida eletrônica, como forró pé de serra e rave. “Os versos e o canto de JG têm um flow que as pessoas da cultura hip-hop reconhecem”, disse BK sobre JG. É curioso pensar que, enquanto uma parte significativa do rap se distancia das raízes do hip-hop (Get Rich or Die Tryin), “antigos” valores como atitude, humildade e respeito ressurgem entre jovens artistas de outras tradições populares, seja no piseiro de João Gomes ou nas serestas gangsta de Grelo.

VIII

Dentre outras coisas, a versão hipster das músicas de João Gomes elimina um elemento essencial, comprometendo o sentido integral da experiência: o desmantelo. E não se trata de um desmantelo qualquer, veja bem: mas desmantelo com Pitu, em vaquejadas no interior do nordeste. Só quem já foi sabe da bagaceira: é de fazer corar o carnaval. Em apartamentos descolados dos grandes centros urbanos, as pessoas podem até dar vexame, mas não há, desmantelo. É justamente essa experiência que a versão moderninha do piseiro deseja eliminar, dando-lhe um ar descolado e cool. O processo de higienização almeja afastar seu público para que ouvidos mais “sofisticados” possam apreciar o som do conforto de seu lar, sem a presença incômoda dos corpos pretos e suados da classe trabalhadora.

PARTE II

O texto acima gerou certo rebuliço na internet, com a artista, o marido e colegas famosos respondendo de forma um bocado enviesada. Publiquei, então, essa espécie de tréplica.  

Ainda uma última palavra sobre a polêmica em torno do disco de covers da Mãeana, produzido por seu esposo.

Não me interessa tanto o fato do disco ser (ou não) fraco. A rigor, ninguém parece estar muito preocupado com isso. Tem quem concorde, tem quem discorde, e tudo bem. Mas o ponto central do meu argumento nunca foi exatamente esse. A questão é, e por aqui sempre será, política.

Primeiro como tragédia, depois como farsa. A polêmica é uma repetição exata (e ao mesmo tempo caricatural) de outra de 2014, quando então identificava o sentido ideológico do mesmo procedimento de suavização estética em artistas como Cícero e Banda do Mar, que eu então chamei de MPB neoindie – um nome bem ruim, a propósito. “Fofolk”, como sugeriu um parceiro, é bem melhor.

O fundamento da crítica, que parte de um diagnóstico do Paulo Arantes, segue o mesmo: boa parte daquilo que nós nos acostumamos (por força do hábito) a identificar como esquerda, sobretudo após a derrota histórica do comunismo, não passam de valores ideológicos liberais dos mais safados. Que são valores de uma classe média comprometida até a tampa com o capitalismo, e contra os quais a esquerda costumava se colocar, em favor da classe trabalhadora.

Esse campo “progressista” (na verdade, centro-direita liberal que gosta de “samba de raiz”) só consegue se afirmar enquanto esquerda à medida que se torna indiferente aos destinos e valores da classe trabalhadora (se ainda faz sentido usar essa terminologia). Ou seja, a condição de seu progressismo é funcionar como núcleo ideológico avançado do capitalismo. Seu papel é convencer os excluídos de que o capitalismo pode dar certo. Lorota essa que ninguém mais compra.

Tirando a luta de classes da equação, é muito fácil pagar de esquerda. Basta ser da turma do anti: antirracista, anti machista, antifascista, anti monogamia. Superdimensiona-se o Não de modo a eliminar a necessidade do Sim, fundamental na construção de vínculos reais com a classe trabalhadora. Organização popular e trabalho de base.

Ser de esquerda, nesse contexto, é se orgulhar de não parecer com a classe trabalhadora. Execrar o “pobre de direita” enquanto se ostenta seu amor pela “diversidade” da classe média. Nada mais conservador e reacionário, portanto. A genialidade dos pais não redime os pecados dos filhos, mesmo que ajudem a comprar entradas para o paraíso.

Traçado o diagnóstico, tudo o que é preciso fazer é reintroduzir a luta de classes na equação. “Sabe por que seu som é fofo? Porque a polícia faz o trabalho sujo por você, para garantir sua paz de espírito”. Solto essa e saio da sala. Observo, sadicamente, a culpa de classe e o senso de autopreservação da branquitude completarem o estrago. Um riso melancólico e forçado se insinua.

“Pô Acauam, mas isso ai parece o discurso facistoide do Tropa de Elite enquadrando os maconheiros da PUC”. Bingo! Outro plot twist. É aqui que descobrimos que os mais pobres votam na extrema direita não por manipulação, mas porque é ela, e não a esquerda, que tem coragem de dizer a verdade. Não existe alternativa dentro do Capitalismo. O que existe é uma guerra de todos contra todos por alguma reserva mínima de mercado. Bem-vindo ao deserto do real.

O que se observa nessas maneiras suaves e delicadas, portanto, é a formalização – involuntária e irrefletida – de um longo processo de derrota histórica da esquerda, soterrada pelo neoliberalismo empreendedor. Derrota essa que é percebida como positiva por um campo progressista rebaixado à condição de mero fiador do capitalismo.

A estética da suavização de classe média é uma expressão ideológica do progressismo liberal que atualmente ocupa o lugar daquilo que costumávamos chamar de esquerda. Ambas dependem fundamentalmente da neutralização da potência popular para afirmar seu progressismo, sendo, portanto, formas de conservadorismo com verniz de “esquerda” – categoria que, dentro dessa lógica, deixa de fazer sentido.

Primeiro como tragédia, depois como farsa. Em 1968, um certo judeu austríaco que não é muito chegado em pagode já dava a letra: antes do golpe de 64, o Partido Comunista brasileiro opta por se aliar aos setores progressistas da classe média, em oposição a ala mais conservadora (Xandão, nosso herói). Ora, a oposição entre progressistas e conservadores existia, mas “nunca pesaria mais do que a oposição entre as classes proprietárias, em bloco, e o perigo do comunismo”.

Ou seja, na hora do aperto, liberais do bem vão sempre correr pros braços dos conservadores, defendendo seus privilégios. É por isso que quando você aperta um pouquinho, o liberal progressista “aliado”, destila pérolas do tipo “Beijos de Paris”, Ódio antirracista, “Olavo tem razão” além, é claro, do clássico,”essa é pra quem é preconceituso e acha que branco não pode tocar samba.”

A questão, portanto, vai além do mero gostar ou não gostar de um disco, de uma voz, de uma performance. Estamos falando da dimensão brasileira do Realismo Capitalista e seu conjunto de falsas alternativas. Me desculpe por ter que lhes dar essa triste notícia, mas o Capitalismo está em guerra e vocês fazem parte da classe que precisa ser derrotada pra que o mundo tenha alguma chance.

É aquele velho papo neh? Qual o papel do branco aliado na luta antirracista? O mesmo de sempre: Perder a guerra. Como? Te vira. Vários dos seus conseguiram forjar estratégias terroristas. Pergunta pra Beth Carvalho como ela conseguiu a carteirinha. Ou pro Siba. Sei lá, irmão. Dá seus pulos e faz a tua. Ou não. Mas depois não vem chamar de mano…

Img 20191209 150955739 2
Acauam

Share this post

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *