
1.
Ainda estou aqui deve ser criticado porque não retrata a perspectiva periférica.
Ainda estou aqui deve ser criticado porque seus realizadores não respeitam os preceitos cristãos.
Ainda estou aqui deve ser criticado porque o diretor ou algum dos personagens retratados foi acusado de assédio e/ou racismo.
2.
Não há dúvidas que o mérito é radicalmente distinto em cada um desses casos. Mas existe um princípio estrutural em comum: o fim do primado da forma. O valor da obra é julgado a partir de premissas que lhe são exteriores. Premissas identitárias, todas elas, na medida em que o que se busca é o coincidente na linguagem.
O risco? A neutralização do dissenso e, consequentemente, da política. Fazer da arte, twitter, e do artista, influencer. Negar à arte o poder de (des)encontro radical com a alteridade, sobretudo quando esta nos é abjeta. Toda real alteridade real é abjeta: aquilo que no Outro nos conforta não é alteridade, é espelho.
3.
Foi por meio dessa abertura infinitesimal ao abjeto que Machado de Assis dissecou a estrutura de poder da branquitude brasileira, e Guimarães Rosa subverteu a estrutura da linguagem erudita a partir de seu negativo popular. E foi por meio dessa abertura que o canalha do Monteiro Lobato inventou literariamente o conceito de infância entre nós.
É a abertura da linguagem que torna possível esse acesso radical ao vazio do Outro. Vazio este que o identitarismo deseja preencher com sua própria imagem. Acontece que a linguagem da arte é e não é a linguagem da ideologia. A arte como uma sublime forma de traição.
Linguagem é poder e não moral. Tio Wagner mandou lembranças.
4.
Então tudo o que precisamos fazer é voltar ao primado da forma, certo? Analisar as obras pelo mérito que elas têm. Retornar a materialidade do objeto.
“Ainda estou aqui deve ser criticado por aquilo que ele é”.
Sem mais. Pronto, problema resolvido.
Bem que as coisas poderiam ser assim, tão simples. Porém, ah porém… Recorramos a um identitário eslavo: Slavoj Zizek. “Não existe o fora da ideologia”. A ideologia a tudo consome, é o buraco que pavimenta a linguagem. E, no caso do nosso simpático capitalismo autofágico, não existe fora do identitarismo. Ou seja, não existe objeto ao qual voltar.
5.
Não existe “Ainda estou aqui”.
A defesa do primado da forma em um mundo identitário é a defesa inevitável de um identitarismo qualquer.
Os críticos do identitarismo acreditam estar além\aquém do identitário. Tolos! Partem do princípio de que seja possível retornar a um conceito que perdeu lastro na realidade. Não por acaso o retorno ao “valor intrínseco da obra” resulta quase sempre na valoração dos mesmos “universais” de sempre. Por mais justos que sejam os critérios.
Il n’y a que la politique identitaire!
6.
Basta ouvirmos o episódio da Rádio Novelo sobre Vanessa Bárbara. O que é o Vale Encantado do Rio Pinheiro, também conhecida como a confraria dos Quinze Calvos da Linha Amarela? Aquilo mesmo que chamamos de arte.
Mas não existe o fora disso? Existe, inominável, como aquilo que nos aguarda em silencio do lado de fora da modernidade.
Enquanto isso, mesmo o que é de fora está dentro. O buraco é muito mais embaixo: não se trata apenas dos caras se protegendo, se lambendo e se publicando. A questão é que eles publicam também o que é “certo”. Os Quinze Calvos publicam “A queda do céu”, publicam bell hooks, publicam – muito – Marx. Publicam todo mundo.
O privilégio implica inclusive nisso: poder jogar do lado certo. Comprar acento vip no “lado certo da história”. Implica em bilionário fazendo filme bom, melhor e mais crítico que os filmes de gente ferrada, que mal faz filme.
7.
“Ainda estou aqui” é muito bom, Fernanda Torres é fantástica, e é maravilhoso que a história de luta real de uma mulher extraordinária faça sucesso na conjuntura fascista atual. Um feito a ser exaltado com um merecido Oscar.
Ainda assim: existe alternativa a isso?
Não estou respondendo nada, só perguntando. E perguntar não ofende. A não ser, é claro, que estejamos fazendo as perguntas erradas. Porque, nesse caso, estamos todos f*d*d*s.
8.
Premiar mulheres negras. Um vestibular só com autoras negras.
É pouco. Contraproposta: uma premiação só para homens brancos e calvos, em que o vencedor será publicado por uma grande editora, levando uma boa quantia em dinheiro. Repito: só homem branco e calvo. Sem mimimi.
Todos os jurados negros. O dono do banco que patrocinaria o evento, negro. Deus, também conhecido como Universal, enfim, do nosso lado.
Não queremos mais cotas pro nosso povo. Queremos nosso povo decidindo quem é que merece receber cota.
Ou será que tudo o que podemos fazer é sonhar com o melhor nesse mundo?
9.
Quando o bilionário acerta, ele está do lado de quem?
Os acertos dos privilegiados devem valer menos que as tentativas equivocadas dos despossuídos. Pois o privilégio paga inclusive por isso: acertos.
Utopia antirracista liberal: aula de antirracismo com Angela Davis em um colégio com mensalidade de 4000 reais por mês. Ou é isso ou retornar ao Gilberto Freyre. E ao cânone de sempre, que até pode incluir algum pretinho…
Desde quando isso é algum tipo de escolha? Me poupe dessa.
Então é melhor que não tenhamos aliados? Deixar tudo nas mãos do fundamentalismo cristão? Claro que não, não se faça de sonso que eu sei que besta você não é (me contrata, por favor!). Acontece que tudo é identitarismo. Não existe o fora dele porque, afinal, estamos em guerra.
10.
“Se escrevo tanto sobre a condição do negro, não é por achar que não tenho outro assunto, mas só porque foi esse o portão que me vi obrigado a destrancar para que pudesse escrever sobre qualquer outra coisa.” Palavras de James Baldwin.
Bom, aliados, esse pesadelo é também agora o vosso. Muito pior que na época de Adorno, porque não existe mais linguagem que não seja desespero.
Sejam bem-vindos.