1.
“Eae bicho, tá sabendo que o Silvio Santo morreu?”
Não me lembro qual foi a última vez que fiquei sabendo da morte de alguém famoso assim, a moda antiga. No geral, somos distraidamente capturados pela força algorítmica das redes, que nos sobrecarrega com imagens em preto e branco e textos protocolares, indicando o tom mais adequado ao momento: protocolar, pessoal, comedido ou enfático.
Não foi assim dessa vez: amigos e familiares se falando ao telefone (costume arcaico) para comunicar o ocorrido. Afinal, Silvio Santos não era só mais um cara famoso. Nem só mais um milionário. Literalmente, Silvio Santos me formou.
2.
Não digo que tenha sido uma formação integral. Não. No meio do caminho, fui desviado pelo comunismo e por Machado de Assis, que, por sinal, me desviaram também do bolsonarismo e de Jesus. É sem remorsos, mas também sem romantismos, que reconheço que Seu Silvio me formou. Inclusive, mais do que as novelas da Globo – outro vetor de educação sentimental do país. Criado pela TV, assistia mais SBT que Rede Globo. Mais Gugu que Dias Gomes. Mais pagode que MPB. Toda diferença entre frequentar um circo para assistir a Monga ou frequentar o mesmo circo, mas para ler poesia.
3
“Dona cigarra, como vai seu marido? Foi fumado”.
Esse senso de humor estragado, de tiozão, analógico, e que já me custou vários dates que esperavam (com razão) por alguma coisa um pouco menos idiota que “o gato ou o Quico”, também devo a Silvio Santos.
Chaves & Chapolin & Tripa Seca & Quase Nada. O gato & o Quico. É feia, mas é uma flor. Minha flor.
4
Mais do que tudo, foi seu Silvio quem moldou meu senso estético. Desvinculado do moralismo conservador (talvez nem tanto assim), é ele quem embasa o lugar afetivo que a cultura de massa ocupa em meu pensamento. Coisa que nem seria de grande nota, não fosse o fato de eu meio que trabalhar com isso. E o que é pior: dentro da Universidade, antro de boas intenções e crítica revolucionária. Negatividade & Radicalidade & Vanguarda & Engajamento. Acontece que aprendi com Seu Silvio que, se o povo está gostando, é porque tem algo ali de muito certo – o oposto da percepção crítica de que o povo precisa ser “ensinado a gostar”, que orienta a percepção acadêmica média. Os pobres são os melhores críticos culturais do país, e por isso nossa arte é o que existe de melhor em nós. Silvio Santos sabia disso. A Globo e a universidade chamam isso de mal gosto e brega. Sou mais o Silvio Santos.
5
Pro bem e pro mal, Silvio Santos me vacinou. Sua catequese dominical – evento familiar obrigatório – me livrou desses deslumbramentos. E a imoralidade reacionária do Gugu completou o (des)serviço: perdi o resto da vergonha na cara. Desde então, tudo o que eu faço é buscar na academia o instrumental analítico mais adequado para traduzir em percepção crítica os ensinamentos das tardes de Domingo do SBT. Mais do que metodologia, um programa político. Conservador? Provavelmente. Mas não é verdade que todo o problema do progressismo brasileiro passa em alguma medida por essa incapacidade de tradução do popular no seu Outro?
6
Os resultados são meio óbvios e algo decepcionantes, mas ainda assim podem soar bastante heréticos, a depender do rito. Tirica é (muito) melhor que Fábio Porchat; Pânico na TV é mais radical que Choque de Cultura; Programa do Ratinho é mais “autêntico” do que os programas autênticos da TV Cultura; João Gomes é mais raiz que trios raiz de Pé de Serra ; o funk é mais radical do que a média do RAP contemporâneo; Art Popular é mais potente que rodas de samba que emulam tradicionalismo; Calcinha Preta é pop rock acima da média; Psirico coloca no chinelo boa parte do circuito Sesc; e por aí vaí.
“Você diz essas coisas só pra ganhar engajamento”. Sim, mas também nunca falei tão sério em toda a minha vida.
7.
Inclusive, essa declaração de afeto pode soar herética para a lúgubre obviedade dos ritos progressistas. Afinal, não seira essa a performance mais adequada diante de tantos adjetivos que tem aparecido por aí: Apoiador da ditadura. Bilionário usurpador. Empresário-coronel. Magnata perverso. Reacionário. Bolsonarista. O pacote completo de imoralidades do cidadão de bem, que fez da pobreza entretenimento e do escárnio, diversão. Inimigo das artes burguesas. Negação da centelha de vida de Zé Celso. O antibarroco. Plena realização do projeto ditatorial realizado no campo da cultura. Em suma, capitalismo periférico em sua versão mais sádica, sem freios ou vaselina, do jeito que o diabo gosta. No país com nome de mercadoria, topar tudo por dinheiro se tornou nosso evangelho.
8
Por vezes, Silvio Santos transparece enquanto pura exterioridade, espécie de assombração às avessas. Canto despido, a palo seco: armadura impenetrável donde não se decifra o interior inexistente. “A alma exterior era sua existência inteira”. Mesmo os relatos de amor e afeto que acompanhamos desde sua morte parecem atravessados pela dimensão profissional, como se ser patrão fosse, nele, condição subjetiva, com amores regulados por relações contábeis. Não por acaso seus amigos são seus empregados e, suas filhas, números cardinais. Mesmo aquilo que em nós há de mais espontâneo, nosso riso, nele assumia algo de artifício calculado para se tornar marca registrada capitalizável (“riso franco e puro para um filme de terror”). Existe algo de perversamente fáustico nessa artificialidade que sacrifica tudo ao Capital, mas também um inequívoco e nada desprezível elemento de identificação popular. Afinal, sacrificar o melhor da vida em nome do trabalho é o que todo cidadão brasileiro precisa fazer até o dia de sua morte. Não é por outra razão que o mito do camelô pobre cola tanto.
9
Decerto, tudo isso e muito mais. Mas, é como eu disse antes: vacinado, sem vergonha na cara, marinado na banheira do Gugu e curtido no banco da praça. Vanguardismo e Alta Cultura me constrangem muito mais que A Praça é Nossa. É essa centelha de Verdade – que para a inteligência popular é pura obviedade – que nossos bem-intencionados salvadores são incapazes de enxergar na cultura de massas. Por isso, tudo o que eu queria hoje era passar a tarde inteira assistindo reprises do Show de Calouros. Só eu e os de verdade. (De)formados e inocentes como os que assistem futebol sem culpa, a despeito de seus crimes.
Eu jurava que seu Silvio era imortal. Estava errado. Até os Domingos morrem.