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Sobre Ludmilla, intolerância e o “pasto inédito da natureza mítica das coisas”

Ludmila

I.
“Só Tranca Rua expulsa Jesus das pessoas”. Fosse essa a frase exibida por Ludmilla em sua performance, os cristãos do país estariam em polvorosa, acusando Ludmilla e a esquerda de intolerância e “cristofobia” – esse espantalho paródico. No entanto, sendo Jesus a figura que aparece “exorcizando” Exu – entidade criminosamente transformada em demônio por setores cristãos reacionários – trata-se de apenas mais um exemplo de “liberdade de expressão”. Ademais, nosso amado Senhor jesus Cristo faz um grande bem para o país ao libertá-lo desse “mal”: afinal, não seriam os africanos amaldiçoados pelo próprio Capiroto, descendentes de Can, o proscrito, como sugere o pastor Marcos Feliciano? A demonização de Exu não é apenas um caso de “intolerância religiosa”, a rigor, um eufemismo. Trata-se de uma das mais bem sucedidas, naturalizadas e socialmente aceitas estratégias racistas adotadas despudoradamente no país.

II.
Compreende-se, portanto, por que a parcela progressista do público de Ludmilla se sentiu incomodada com a imagem projetada na performance. Dito isso, será que podemos cravar a acusação de “intolerância religiosa” na artista com tanta certeza?

III.
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que esta é uma questão mais estética do que ética ou jurídica. O cerne do debate reside em determinar se a imagem é apresentada de maneira positiva no vídeo, endossando discursos cristãos fundamentalistas e reacionários, ou se ela simplesmente captura criticamente a realidade conservadora das favelas cariocas. Esse é, aliás, o argumento defendido pela própria responsável pelas imagens – a videomaker Najur (Ana Júlia Theodoro) que, a propósito, tem um trabalho excelente.

IV.
É justamente nesse ponto que as coisas se complicam. Pois, a meu ver, simplesmente não parece ser possível definir com certeza se a mensagem no vídeo é de endosso, crítica, ou endosso crítico, uma vez que o vídeo como um todo é propositalmente marcado pela ambiguidade. O trabalho reúne diversas imagens contrastantes da vida da periferia, ora positivas, ora negativas, sem necessariamente aderir a seus pressupostos. Os carros incendiados são sinal de revolta popular ou de violência periférica? O motoqueiro vestido de Capitão América é signo de adesão ao imperialismo ou subversão criativa? Provavelmente ambas as coisas. A arte não responde: ela penetra surdamente no reino das palavras.

V.
Não que as imagens que aparecem no vídeo sejam neutras, como sugerido pela artista em sua declaração no Twitter. Como bem apontou Túlio Ceci Villaça no Instagram, o vídeo não expressa a realidade das favelas sem filtros, mas sim uma visão específica dessa realidade na qual há mais espaço para mensagens cristãs do que para mensagens de religiões afro. Pode-se até argumentar que isso se deve ao fato de haver mais cristãos que umbandistas nas favelas, mas então por que o vídeo inclui uma imagem de Marielle Franco e nenhuma de Bolsonaro? Será que as favelas cariocas são mais politicamente de esquerda? A arte comunica também a partir daquilo que silencia, e é fato que a única mensagem religiosa que tem direito a voz no vídeo é a cristã. Uma escolha deliberada que por si só já denota a violência de sua hegemonia religiosa.

VI.
“Ludmilla deveria ter deixado mais claro o seu repúdio e posicionamento no vídeo”. Será? Talvez ela tenha julgado suficientes os diversos outros acenos progressistas espalhados ao longo da sua apresentação. Ali onde exigirmos da arte certezas, provas, clareza e convicção, ela nos responde com desdém e ironia, ofertando em vez disso uma abertura infinitesimal para o imponderável “pasto inédito da natureza mítica das coisas”. De resto, ideologia, seu avesso. Daí o paradoxo: só é possível cravar com certeza o racismo ou intolerância da artista a partir da análise minuciosa de uma obra que, ao ser analisada minuciosamente, se exime de confirmar o que quer que seja para além da relação equívoca e fugidia da linguagem com o real. No limite, é o acesso aos fatos que é vedado pela arte, cuja verdade é tão somente a da própria linguagem.

VII.
Em suma, não é possível extrair a verdade por meio da análise da obra que, entretanto, é o único lugar em que a “verdade” poderia ser encontrada. O que para a dinâmica das redes, adeptas de posições fixas e limitadas, é um verdadeiro desastre. Daí que o verdadeiro foco de interesse da polêmica seja menos a verdade sobre Ludmilla do que a seleção do frame exato para que possamos performar uma identidade pró Jesus, pró Tranca Rua ou “neutra”. Diante da sensação constante de que nosso tempo sob a terra se esgota, cobramos da arte clareza e discernimento, buscando nela o reflexo tímido de expectativas há muito rebaixadas. Reduzindo a arte a condição de peça caricata do narcisismo autoindulgente que caracteriza nossos tempos, com a conivência dos próprios artistas que, afinal de contas, precisam colocar comida na mesa.

VIII.
É intrigante observar a peculiar relação entre cultura e política que se estabelece nesse contexto. No campo político, a esquerda assume uma atitude estética contemplativa e passiva, digna dos mais refinados salões de concerto. Teto de gastos, reformas reacionárias, agenciamento neoliberal da educação: tudo é perdoado ao governo “de esquerda”. Uma postura tímida e mansa que se justifica pela eminência do mal maior que nos espreita. Por outro lado, em relação à arte, a esquerda torna-se agressiva e altiva, assumindo uma postura política combativa que não admite desvios ou concessões. Ou seja: a arte, que deveria problematizar nosso conjunto de crenças, é forçosamente convocada a se posicionar do “lado certo da história” – i.e., o nosso. Enquanto a política, que deveria ser pressionada pela força dos movimentos populares, é covardemente protegida do confronto com a realidade. O medo, afeto predominante de um mundo em colapso, neutraliza o potencial crítico dos dois campos.

IX.
O público clama por coerência, menos por convicção ideológica do que por exigência algorítmica – é preciso mostrar-se sempre limpo e apresentável para os medalhões de nossa bolha. Ludmila, negra, periférica, rica, bisexual, e cristã, complica esse desejo de pureza. Para ampliar seu alcance, a artista não hesita em distribuir mensagens contraditórias: para os progressistas, verdade periférica, lugar de fala e liberdade de gênero; para os cristãos, o silenciamento em relação a outras crenças e uma igreja de presente para sua pastora favorita. Para o jovem, muita dança e putaria. Produto disponível para todos os gêneros e idades

X.
Na postagem em que se defende das acusações, Ludmilla adota a típica estratégia liberal de progressismo vazio. Afirma abominar e condenar todo tipo de intolerância, mas é incapaz de se posicionar contra um caso concreto de racismo cristão que acontece bem na sua frente. O discurso liberal de tolerância abstrata – política sem política – permite ficar bem na foto sem correr os riscos de um confronto real. Inclusive porque enquanto artista pop, sua convicção é pautada em primeiro lugar pelas leis do mercado – assim como a militância liberal de Beyoncé, ou o gangsta de mercado do hip hop hegemônico. O que dota de coerência esses projetos não são seus princípios éticos, mas o movimento automático do capital. Limites estéticos e políticos de uma arte assumidamente liberal.

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Acauam

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