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Por que me converti ao identitarismo?

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I

Uma das vantagens de envelhecer é que você fica escaldado para certas coisas, pois a história tende mesmo a se repetir – primeiro como tragédia, depois como tiro de doze.

Todo esse ataque coordenado do campo progressista aos chamados identitários não é novidade nem causa surpresa. Já vi acontecer, pessoalmente, sob circunstâncias históricas até certo ponto parecidas.

II

Em meados de 2017, quando eu estava particularmente desencantado com o PT (sim, mais do que agora, pois, à época, ainda acreditava que o partido era de fato de esquerda), fui convidado a participar de um grupo de nome esquisito e pomposo no Facebook. A propaganda do dito cujo era a seguinte: reunir pessoas de diversas tribos, dos esquerdistas mais radicais aos conservadores mais liberais, em uma espécie de frente ampla intelectual contra as práticas e retóricas governistas. Pois já naquela época o PT tentava silenciar a oposição com o papinho de que as “críticas ao PT fortalecem a direita”, criando inclusive diversos mecanismos de criminalização de movimentos sociais que seriam posteriormente utilizados por Bolsonaro.

III

Note que o papinho era, então, o mesmo de agora: a necessidade de criar um ambiente mais democrático para o debate de ideias, livre de manipulação moral e vitimismo. Na época, a noção de identitarismo ainda não estava consolidada, mas seus equivalentes já estavam todos lá – politicamente correto, vitimismo, e afins – todos duramente criticados.

Ou seja, o tal do “discutir política com a razão, e não com o fígado” – papo de quem está por cima da carne seca. A boa e velha estratégia ideológica liberal de se colocar desde o ponto de vista de uma racionalidade que, na prática, só se realiza a partir da “violência ontológica e gratuita” (Wilderson) contra determinados corpos.

IV

De início, o grupo possibilitava de fato algumas trocas interessantes. Cheguei a conhecer gente bacana por lá – todos meio inocentes na época – com quem troco figurinha até hoje.

Corta para 2018. O clima no Brasil começa a ficar mais tenso. A direita se fortalece e assume uma postura de ataques mais diretos. Lula vai em cana, Bolsonaro ganha força. Ou seja, à medida que a vida se tornava significativamente mais difícil para os brasileiros, o país se radicalizava.

V

Nesse processo de acirramento do conflito, nossos aliados também se radicalizavam. Entretanto – eis o plot twist – não pro nosso lado. Brancos progressistas de classe média, mais ou menos intelectualizados, migravam cada vez mais para a direita, enquanto afirmavam ser isso, precisamente a normalidade democrática.

Democracia fascista de baixa intensidade, decerto.

VI

Travestidas de “liberdade de expressão” e “espírito livre” – i.e. marmanjo fazendo cosplay de Olavo de Carvalho -, as barbáries iam aumentando de intensidade. Os insultos contra as minorias se tornavam recorrentes. Qualquer reivindicação mínima de direito social era imediatamente rotulada como identitarismo (ou, na época, como “mimimi politicamente correto” e “burrice esquerdista”). Os direitos para mulheres eram, obviamente, o alvo principal.

VII

Faziam sucesso publicações que, mais tarde, se tornariam lugar-comum no cotidiano da extrema-direita: um casal de mulheres que matou uma criança movido por ódio aos homens; policiais negros violentos e racistas acobertados pela esquerda; performances identitárias de mau gosto em espaços que exigiriam decoro, como o parlamento e, sobretudo, as universidades. Clichês que alimentam o imaginário conservador eram apresentados por progressistas como prova de “complexidade”, como o caso emblemático da mulher branca que salva uma criança negra da violência de um homem negro.

Podiam ao menos fazer a gentileza de trocar a p*rr* da princesa.

VIII

Conforme a crise social se agravava, antigos aliados defensores da democracia passavam a proteger seu próprio campo despudoradamente, atacando, de forma cada vez mais aberta e agressiva, os mesmos alvos de sempre. Ou seja, tornavam-se cada vez mais parecidos com a extrema-direita, a ponto de aceitarem entre seus membros figuras notoriamente desonestas e manipuladoras—pra dizer o mínimo—como Leandro Narloch. Esse mesmo, que publicou um artigo na Folha (outra “aliada”) defendendo a guinada fascista de Zuckerberg como—vejam só—uma vitória antiidentitária.

Pelo menos não mentiu: é exatamente esse o mundo de “liberdade” que o antiidentitarismo promete.

IX

Naquele momento, que vejo se repetir agora, aprendi uma importante lição: na hora que o couro come, cachorro corre pra lamber a própria caceta. Melhor dizendo: quando a situação se torna crítica, antigos aliados saem correndo não pro nosso lado, mas pra cima de nós. Minha avó já dava essas ideia, saca o vacilo. Foi assim quando os abolicionistas brancos se aliaram aos saquaremas contra o abolicionismo negro radical (Marcos Queiróz). Foi assim quando setores liberais avançados se aliaram aos militares contra os comunistas (Roberto Schwarz). E é assim agora. As críticas aos excessos identitários – que existem – não podem ser compreendidas sem levar em conta os perversos mecanismos de normalização dos privilégios de classe.

X

Tópico recorrente no grupo: alguns integrantes mais abastados, moradores do Leblon, EUA e de outros polos mais higienizados, viviam exaltando a civilidade argentina frente à barbárie brasileira. A superioridade dos hermanos era tida como evidente, e não enxergar isso seria puro suco de ressentimento moralista dos identitários. Daí a necessidade de se limar o “lugar de fala” (conceito problemático, eu sei, mas não é disso que se trata). Afinal, só assim seria possível ignorar a condição de classe do sujeito enunciador – que vive há dez anos na Europa, ganhando em euro – e como isso direciona seus parâmetros enunciativos. De repente, apontar a conexão óbvia entre “civilidade capitalista” e ódio antinegro passa a ser visto como mecanismo de silenciamento identitário. O tal do lugar de cale-se.

XI

“Ah, mas então quer dizer que se eu não gostar de samba eu sou racista?”

Não, meu alecrim dourado. Na verdade, boa parte dos nossos racistas adora um bom pagode – o que eles não gostam é de pagar pra ver. O alvo aqui é aquele já denunciado por Machado de Assis e Lima Barreto, agora sob novas máscaras: a boa e velha desfaçatez de classe. “Quando a fome aperta, a vergonha afrouxa” (seu Madruga). Ou seja, com o capitalismo nos conduzindo sem freios rumo a extinção global, o primeiro passo dos privilegiados é garantir a normalização da violência contra os Condenados da Terra, para que nenhum resquício de culpe atrapalhe o avanço do genocídio.

XII

Notem a estranha coincidência: no momento exato em que diversas empresas anunciam a interrupção ou o cancelamento de suas políticas de reparação histórica – que ganharam força no mundo pós George Floyd – os aliados resolvem rever os termos do contrato com as minorias. O fundamento é o mesmo nos dois casos: a causa deixou de ser lucrativa, e não há princípio ético que resista à alta do preço do feijão. It’s the economy, stupid. Sigamos o dinheiro e deixemos de nos surpreender com a debandada dos aliados.

XIII

Por ser identitário, escrevo agora para os nossos – não se ofendam. Por quanto tempo acreditamos que os caras iriam aguentar calados, sem reação, enquanto observavam mulheres negras conquistando cada vez mais prêmios literários? Na música popular eles foram forçados a nos engolir, afinal, fomos nós que inventamos essa linguagem e, sem os pretos, eles nem saberiam muito bem o que fazer. Mas, no meio “intelectual”? A questão nunca foi se haveria alguma reação, mas quando ela aconteceria. Afinal, as cotas não mudaram a cor da intelectualidade, e eles – os aliados – precisam agir o quanto antes para garantir que isso jamais aconteça.

XIV

Mas não estamos nos referindo apenas ao homem branco cis, pois a luta por um lugar no camarote rumo ao fim do mundo afeta a todos. A maioria parda se volta contra a minoria negra, a maioria cis se volta contra as mulheres trans, os liberais brancos se voltam contra os identitários. Em todos esses casos, o conteúdo das críticas perde importância diante de sua condição política elementar: a vitória esmagadora da extrema-direita, que deixa para todos nós, no máximo, migalhas.

É somente quando tudo se torna identitário que tudo se torna, na mesma medida, anti-identitário.

XV

Isso não significa dizer que toda crítica ao identitarismo seja equivocada – longe disso. Contudo, toda critica está a serviço de alguma coisa. No apagar das luzes, aqueles que tecem críticas ao identitarismo – sejam elas justas ou injustas (esqueçamos isso por ora) – estarão ao lado de quem?

Quer ser anti-identitário? Que seja. Mas a sua pergunta é a mesma que a minha: o que os nossos ganham com isso? Esse seu rolezinho fortalece meu corre em que, exatamente? Quando o caldo entorna, não me interessa se tu fala feio ou bonito: eu quero saber por qual time você joga. Fernando Henrique ou Paulo Freire? Nabuco ou Lênin? Rosa Luxemburgo ou Margaret Thatcher? No final do trajeto, quem ficou ao lado dos que foram deixados pra morrer?

XVI

Não se trata de cancelamento. É perfeitamente possível conciliar a ideia de que a minha formação acadêmica voltada para intelectuais franceses e alemães é de suma importância (Marx é ainda a coisa mais radical que eu li na vida) com o fato de que essa mesma formação ocultou de mim intelectuais negros. Eu não li uma linha de Lelia, Beatriz Nascimento, Clovis Moura e Abdias Nascimento na Universidade. Esse direito me foi, sim, negado. Por isso vejo com muita desconfiança algumas pessoas dizendo que não precisamos dos identitários financiados pela Fundação Ford quando temos tantos intelectuais negros mais importantes entre nós. Porque eu sei que foram esses identitários que forçaram a Universidade a engolir o pensamento negro brasileiro. Se dependesse do racionalismo democrático liberal ou marxista, a gente estava esperando até hoje.

XVII

Lição dos mais velhos: se, ao final de todo esse processo de crítica e racionalização, a negrada seguir esperando do lado de fora, então você é só mais um pelego defendendo o mesmo conjunto de privilégios. Enquanto isso, os identitários, com seu vasto conjunto de equívocos e excessos, colocaram meus irmãos dentro da Universidade.

Não se trata de cancelar ninguém. Não jogo nesse time, e a maioria dos meus autores favoritos, quando não são conservadores, são bastante suspeitos. Não, estamos falando de outra coisa envolvendo cozinha, peixes e gatos. Quem é, sabe.

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Acauam

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