
Pablo Vittar – Batidão Tropical 2 (MA)
Marina Sena, Duda Beat, Anitta, Jão, Luiza Souza, Ludmilla, Glória Groove. Foram muitas as divas pop que lançaram discos em 2024, mas nenhum deles me soou tão divertido quanto o Batidão Tropical, da Pabllo Vittar.
Seu mérito consiste em ser um disco despudoradamente popular. Não quer adaptar sua linguagem, migrar de público ou soar cult. Seu foco não é o palco do Sesc ou festivais “alternativos”, mas os mesmos botecos e vaquejadas que tocam Banda Djavú, Calypso, Magníficos e Calcinha Preta. Sampleamento pop-periférico bem assentado em programação eletrônica radicada nos paredões do Norte e Nordeste.
Se um dos feitos mais interessantes do mercado pop nos últimos anos foi o deslocamento do pagode para o público LGBT, encabeçado pelo Numanice, de Ludmilla, o conjunto de discos decorrente do projeto – a despeito de seu sucesso comercial – não me parece entregar tanto sabor quanto o batidão de Pabllo. Claro, a comparação não é totalmente justa, já que Pabllo joga confortavelmente dentro de casa. Contudo, arriscando menos, diverte mais.
Com um pouco mais de ousadia, poderia até alcançar algo mais denso e complexo, como o que Getúlio Abelha vem propondo entre nós. Mas, enquanto esse dia não chega, é excelente pedida rebolar a raba ao som de hits desavergonhadamente desmantelados.
Ou isso, ou me tomam inconfessáveis sopros de saudade agrestina.

Cantoria Crua: Encantado será o fim (PE) (2023)
Percorrendo os vastos prados e colinas do território pernambucano, nos deparamos com a encantadora cidade de Garanhuns, a Suíça Pernambucana, conhecida assim por seu clima ameno, rodeado por sete belíssimas colinas assentadas no coração do agreste meridional.
Ao menos é isso que vemos grafado no folheto – narrativa oficiosa do poder local, branquíssimo em seus vis e bregas bunkers de Heliópolis. Contudo, o nome próprio trai a verdadeira face da entidade: Garanhuns é Quilombo afro-indígena, conexão Palmares-Pernambuco. Vossas colinas são morros a espalhar preciosos recados que, como bem sabe o enxadeiro Pedro Orósio – sete perna que de corpo nunca se cansava – fluem no espaço enquanto música.
Quem for de ouvir, que ouva: Cantoria Crua é a saga desse velho vaqueiro que atende pela alcunha de músico popular. Note que o encantamento se dá no mesmo território semântico de artistas contemporâneos, como o extraordinário Radiola Serra Alta, de Jéssica Caitano, mas como se o tempo se invertesse, encantado, pois a viola congela o instante para que ouçamos seus milagres.
Quem gosta do universo para onde Elomar nos conduz, ouça a crueza dessas vozes. Canto despido, a palo seco; canto em deserto sem sombra, em que a voz só dispõe do que ela mesma se ponha.

Liniker: Caju (SP)
Caju não foi um dos discos que mais fizeram minha cabeça. Mas, assim como o filme de Walter Salles, é uma das obras incontornáveis de 2024. Um trabalho excelente, ainda que irregular — e bem sintomático dos nossos tempos.
O disco revela diversas camadas dos desejos e anseios da nossa época, a começar por uma curiosa experiência de “empoderamento desempoderado”: o desejo de autossuficiência constantemente atravessado por uma carência de maior proporção que só não devora o sujeito porque Caju é, sabiamente, uma personagem. Ou melhor: um avatar, mais adequado, portanto, ao horizonte epistêmico das redes sociais.
A despeito da base soul do conjunto, o ethos do trabalho guarda um quê de pagodeiro. A adesão popular ao disco passa por aí: a sofisticação de Liniker é pop, embora nem sempre o sistema de circulação de mercadorias saiba disso. E o pagode é o pop periférico brasileiro por excelência. Seria o grande disco de pagode de 2024, caso se assumisse integralmente como herdeiro da escola Alcione de sofrimento feminino. Mas o fato de não ser um disco de pagode stricto sensu ressoa positivamente — como no caso de Tim Maia, outro dos nossos grandes pagodeiros encubados.
Caju nos revela o custo real de uma sociedade “empoderada”: a perda do amor e da possibilidade de construção de coletividades. Um mundo desamparado, que só não se converte em desespero porque já não temos sequer tempo para nos lamentar. A intimidade convertida em espetáculo —comum no padrão pop estilo Taylor Swift —, mas de uma maneira estritamente musical e, a meu ver, mais interessante do que a média gringa.
Note-se que é a mesma lição que ouvimos em trabalhos de outras artistas negras, como Mulher do Fim do Mundo (Elza Soares) e Encarnado (Juçara Marçal). Os tempos, contudo, são outros: em Caju há desencontro, mas não propriamente luta. Sintoma de uma época que, por ter desaprendido o amor ao próximo — confundido com uma lista de exigências em três passos — se volta para si mesma, apenas para dar de cara com o vazio que a constitui.

Caxtrinho: Queda Livre (RJ)
O papel da arte negra: Retirar a negridade das garras da transparência (Fred Moten). Fazer desaparecer o que não se pode ocultar. Entre a suposta ou imposta impossibilidade de expressão e a predisposição crítica para escapar, o sujeito acontece em performance, improvisado. Lutar é também aprender a fugir.
A negritude como paradoxo: ser invisível por excesso de visibilidade. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque aprendi com os meus a ser a própria ausência de luz.
“Queda Livre”: estratégia periférica de nunca estar nem onde nem quando. Crônicas do caos, como um ataque cardíaco do verso.
Primeiro passo: mapeamento. Caxtrinho, o bardo de Belford Roxo, transita por um universo em que tudo se apresenta de primeira. Os brancos andam em bando: facul de odonto, férias no Leblon, empresa do pai. Algumas usam trança afro – infiltrados. São muitos, mas a regra é clara: o céu pertence aos meritocráticos.
Segundo passo: traçar rotas de fuga. Um discurso construído na recusa e pelo avesso. A desregulamentação da linguagem, “coisa negra que corta a força reguladora e governante de/do entendimento”.
É rock? Sim. Samba? Também. Conciliados? Nem fodendo. Rolê em estado de estranhamento, sem sínteses confortáveis ou misturas acalentadoras, porque – não custa lembrar – estamos em guerra. O negrume é tudo o que se enxerga, excessivo, como um buraco negro que captura a luz e, com ela, a (im)possibilidade do humano.
Queda livre: abertura radical a singularidade epistêmica da inexistência preta.

Antônio Neves: Deixa com a gente (RJ)
O Rio de Janeiro não existe. O que existe: uma ficção de ensolaradas cortes que se reafirmam cotidianamente, enquanto o peso concreto de nebulosas negras as dissolve. Nenhum Rio de Janeiro existe. E acaso existirão cariocas? Quem há de anunciar a boa nova, o fim do tempo do Império dos Sonhos?
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que existe é o beco. Que, a propósito, agora é do rato. Evidentemente ele não faz mal a ninguém; mas a ideia de que além de tudo ele me sobreviva, para mim é quase dolorosa.
Digo, desdigo: o novo disco de Antônio Neves soa carioquíssimo. O Rio atmosférico, espessa névoa em seu melhor. Um trabalho curtido na melhor tradição dos bailes de gafieira e que, ao contrário de tantos outros recentes do tipo, não padece daquele elemento de fetichização aborrecida com um passado que nunca houve. Materialismo histórico-dialético ou: quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga.
A vitória moral da bossa nova produziu excessos de monumentalização entre nós – famoso camarão que dormiu. Ainda bem que o samba de gafieira, achincalhado, ainda faz miséria nas mãos de bambas pagodeiros que seguem segurando a marimba.
Antônio Neves não pretende reinventar a roda, pois sabe que o samba é a linguagem mais inventiva e longeva da música brasileira. Ele, então, se diverte. Seu baile tem um frescor que se deve, em grande parte, ao teor de liberdade jazzística que atravessa cada composição. O improviso feito dança, o corpo em performance.
Salve Moacir Santos — o brabo — que viu longe e acertou tudo. Salve Raul de Souza, que sorri ao ver mais um disco integrar a excelente safra de bons trabalhos instrumentais recentes, sob o império debochado do trombone.
O Rio não existe. Mas os vascaínos, sim.