
Milton + Esperanza (MG)
Foi Caetano quem disse certa vez que Milton Nascimento era o homem mais triste do Brasil. Ou talvez não tenha sido – pouco importa. O fato é que há tristeza em Milton – uma tristeza de outra ordem, distantes de outras agonias. Nem Roberto Carlos, nem Fagner, nem Nelson Cavaquinho. Em Milton é a existência de todas as coisas que chora – agonia do Eros em Beleza. Tristeza negra sob jugo colonial, território Minas, cuja base sensível é o silêncio católico de suas liturgias. Tudo que existe de NÃO dentro do SIM da voz – agonia da barca dos homens.
Por outro lado, e talvez por isso mesmo, Milton sempre pareceu alguém muito feliz ao lado dos amigos. Em sua tristeza ressoa o desejo de Amor Fraterno que compõe o Belo. Em torno da congregação de sua voz, todos os seres parecem ganhar em densidade, esquecidos de suas paixões para viver a do Senhor – nada menos que o Amor, Incondicional Amor. Nesse trabalho Milton parece muito feliz ao lado de Esperanza Spalding que, como Elis antes dela, entendeu tudo – inclusive no cuidado com limites físicos incontornáveis. Uma linda e intensa carta de amor ao nosso mestre, em um dos discos mais bonitos de 2024.

Grelo: É o Grelo (GO)
O disco “Só Fé”, do cantor Grelo, toma forma a partir do sucesso de uma versão seresta de “Vida Loka”, composta em uma brincadeira entre amigos. Um movimento corajoso e ousado de dessacralização de um clássico dos Racionais, portador não apenas de uma sonoridade específica, mas também de um posicionamento ético radical. Afinal, mais que uma canção, Vida Loka é um hino de guerra do povo preto.
O resultado não deixa de surpreender. As mudanças de contexto e sentido – ao contrário do socafofismo de classe média – não diluem os significados originais da música que, ao contrário, parecem reforçados ao serem transpostos para um boteco mal diagramado. É como se, ao se desviar do caminho da ostentação trilhado pelo próprio rap, Grelo conseguisse preservar algo de hip hop em sua versão desmantelada. O resultado é que há mais “atitude, humildade e respeito” na versão seresta de Grelo do que na postura de muitos dos MCs da cena atual.
De fato, “dessacralização desmantelada” talvez não seja uma categoria analítica de todo ruim para compreender sua estética.
O princípio anti-ostentação, aliado ao distanciamento dessacralizador, confere sentido político ao que alguns poderiam interpretar como “empobrecimento estético” — seja o caráter redundante da programação rítmica do teclado (território de Zezo), ou o tom satírico do canto. Ciente de seu público, Grelo tem como horizonte final a dignidade do desmantelo, seguindo a boa e velha tradição de Reginaldo Rossi. Nesse caso, a precarização dos meios deixa de ser defeito para se tornar princípio estrutural.
Ao mesmo tempo, a presença da ética gangsta old school tensiona o campo ao qual Grelo mais se aproxima: o sertanejo. Daí a sensação de que existe um elemento de disputa (amistosa) com a exaltação meritocrática do lucro a qualquer custo do Agronejo.
Claro, os tempos são ainda de empoderamento e eliminação da concorrência, mas “Só Fé” fala mais sobre lutar pelo fim da escala 6×1 do que sobre trabalhar sem folga para comprar o celular do ano.
Na terra dos megaespetáculos sertanejos, Grelo lança um álbum de covers (inclusive de si mesmo) para tocar em ambientes desaprovados pela vigilância sanitária — o bom e velho brega de cabaré. Sem roupa de grife, carrão ou shape. Mais do que um personagem, Grelo é um meme.

Zé Manoel: Coral (PE)
Em meados de 2004, Chico Buarque afirmou que o tipo de música desenvolvido por sua geração havia chegado ao fim. Era a hora e a vez de um novo modelo de composição, mais adequado aos novos tempos de abismo e catástrofe.
Corta para 2024. O pernambucano Zé Manoel olha bem fundo dentro dos olhos verdes do Buarque e responde: bebesse água de privada, tiozão? Tem nada morto aqui não, ceis que andam enquizilando ofó com oriki errado…
Ouvir Zé Manoel é como adentrar uma cápsula em que fosse possível experenciar um tempo de outro tipo. Uma canção sem lugar no mundo. “Coral” se vale do poder encantatório das artes de suspender o intervalo entre os instantes: a invenção de novos mundos no quando.
Sua lira não tem pressa: privilégio dos que não tem tempo nem lugar. Podemos dizer que sua arte é negra, mas só porque o negro não existe. Negro enquanto aquilo a que se persegue, inutilmente. Se fôssemos religiosos, diríamos se tratar de um milagre. Mas metáforas cristãs não funcionam por aqui. Digamos que o piano de Zé Manoel INCORPORA Johnny Alf, como Xangô a seu cavalo.
Muitos discos de 2024 são lindos (Milton Nascimento, Ilessi, João Bosco), mas em poucos é tão evidente o cultiva da Beleza, ourivesaria em orquidário de canções.

Negro Léo: Rela (RJ-MA)
Certa feita apresentei Negro Léo a alguém que não é muito fã de experimentos musicais, sabendo que ela provavelmente não iria gostar. Dito e feito: nos dois (ou três) casos, a pessoa mal conseguiu chegar ao fim do disco.
Até aí nada de mais: o que importa é o desenrolar da coisa. Pois em todos os casos, a recusa não foi tão absoluta quanto o desejo de recusar. É provável – e compreensível – que a pessoa nunca mais ouça Negro Léo na vida. Mas algo dele ficou lá, aprisionado pelo paladar (é sobre devorar, mais do que sobre ouvir).
Esse algo a mais que, dentro do incômodo, impede a recusa absoluta do sujeito, como um neurótico que se apega a seu sintoma, é o peso do dilaceramento da história, que poucos artistas são capazes de capturar, e que é a matéria escura dos acionamentos sonoros produzidos por Negro Léo. Flashs inconclusivos de um futuro que não. O mundo como quase.
O funk consegue fazer isso. Mas o funk é muita coisa. Coletividade. Saca só: Negro Léo carrega esse peso nas costas. Arquiteto do caos – gostoso veneno. Damião Experiença do Rosário.
“Rela” é um trampo mais sexual, dançante. O lek é funkeiro, brisa eletrônica. Nele, Negro Léo explana pra geral que é gostoso pra cacete. No sentido literal da coisa, como algo que se lambe. Ainda um delírio até o limite, mas com o ritmo introduzindo o experimento por orifícios mais familiares ao corpo.
Desde que se acostume com o tamanho da chibata sintetizada, é lógico.

D. Silvestre – Mandelão bruxaria (RO)
Existe um roteiro óbvio e preguiçoso que costuma dividir o mundo das artes em dois campos: arte comercial, que quer apaziguar, consolar e domesticar, versus arte crítica, que questiona, provoca e causa estranhamento ao fugir do senso comum. No geral, essa narrativa dualista não sabe muito o que fazer com o Mandelão Bruxaria: funk espanta gringo, tuim infarta idosa.
O funk não é antissistêmico, nem necessariamente crítico: ele pode ser bem conservador em seu desejo de foder e botar pra torar no baile. O som, por outro lado, nada tem de conformista: experimentar é a palavra de ordem. Experimento com timbres, agudos extremos, ruídos incômodos que transformam a pista em trilha sonora de terror gore. Sobrevivendo no inferno enquanto dança, pois se mexer é segredo que mantem vivo. Balanço é proceder.
Crítica ou adesão? O que (a quem) isso interessa, de fato? Afinal, o horizonte que se impõe é nada menos que a eminência do colapso total. Não parece óbvio que só ficarão vivos os que souberem dançar? Toda normatividade soa um tanto ridícula em seu complacente senso de auto importância, como um evangélico a louvar as qualidades do inferno cristão frente ao muçulmano quando só o que importa é de que lado estaremos quando dentro do abismo.