1. Gostaria de comentar algo sobre a grande lapada que, em geral, a esquerda tomou nestas eleições municipais – tragédia anunciada, decerto. Gostaria, mas não faço. Análises conjunturais já existem às dezenas, algumas até com certo brilho. Limito-me, então, a tomar um atalho, conduzindo-me discretamente à turnê de Maria Bethânia com seu irmão – um show que, por sua vez, também não vi. Ou, mais apropriadamente, a um momento em particular: aquele em que Caetano, tomado pelo Espírito Santo, entoa o louvor “Deus cuida de mim”.
2. Mesmo quem não foi, sabe que este é O momento. Caetano entoa o hit do pastor progressista, para desagrado de boa parte do público pagante. Profanação do ambiente de acolhimento e conforto para os que buscam deslembrar da tempestade lá fora. “Precisava, Caetano, meu brother?” Desprecisava. Alguns amigos chegaram a identificar o prenúncio de uma vaia, presa na garganta por respeito às entidades sob os holofotes. Respeito ou talvez… medo? Imagina passar para história como o público que tomou novo esporro do aedo tropicalista. “Vocês não estão entendendo nada” versão 2.0? Melhor se haver com Cristo.
3. A estratégia, no caso, não é nova: Caetano há muito cultiva o gosto pelas provocações certeiras à esquerda bem pensante (sendo o próprio Tropicalismo a mais bem sucedida delas). E a esquerda bufa e se morde de raiva, lamentando que o grande intelectual da música popular não se encontra entre seus quadros. Ah, como amamos odiar esses liberais safados…
4. Dois aspectos se sobrepõem e contradizem no gesto – acerto crítico e insuficiência política. Comecemos pelo primeiro: o incômodo instaurado pelo louvor ateu escancara o abismo enunciativo existente entre público progressista e classes populares. Abismo que vem sendo capturado com sucesso pela extrema-direita, e cujo resultado prático imediato foram as derrotas eleitorais.
5. Mais do que isso: a performance torna evidente o incômodo do público progressista com a cultura popular “realmente existente”. Uma coisa é admirar um pobre como Edouard Louis, escritor premiado que além de branco, fala francês perfeitamente e é de esquerda. O pobre que a elite progressista pediu a Deus. O pobre perfeito, sua imagem e semelhança. Amor sem culpa dentre homens de boa fé. Já os pobres evocados por Caetano… bom, esses talvez estejam perto demais para serem perdoados.
6. Ou pior: a performance de Caetano põe a nu o não dito elementar dos progressismos da vez: um impronunciável horror ao pobre inscrito na rejeição aos evangélicos. Sim, ele mesmo, o fantasma do “pobre de direita”, já esconjurado pelo camarada Paulo Galo. A extrema direita reconhece, escancara e goza dessa contradição, não porque ela mesma não odeie aos pobres, mas porque, ao contrário da classe média progressista, não precisa disfarçar seu desprezo.
7. Acerto crítico, decerto, mas não sem custos no atacado – no limite, a conjugação de insuficiência política e equívoco de percepção. Note-se, a propósito, o quanto Caetano Veloso vem se tornando a cada dia mais parecido com – quem diria – o próprio Lula em pessoa (ou mito). Também o presidente, para garantir a governabilidade (que ninguém sabe ao certo do que se trata) optou por trazer ao palco possíveis aliados dentre os antagonistas: Carta aos evangélicos, Frente Ampla, Geraldo Alckmin. Mirando na conciliação, o presidente vem acumulando a mais completa subordinação ao paradigma conservador sem, com isso, ver subir sua popularidade.
8. Isso porque não estamos mais em 2002. Existe uma guerra santa em andamento e o fundamentalismo miliciano alterou por completo a correlação de forças. Em 2024, ser a favor do aborto, ou pertencer ao candomblé, não é apenas um modo de vida entre outros, mas uma afronta aos planos de Deus (Mito). O fiel (Eleitor), tornado soldado (Milícia) tem por missão confrontar a ameaça insurgente como quem exorciza demônios em uma sessão de descarrego. Adversários são inimigos, e o inimigo é o Cão.
9. Na prática, Caetano (ou Lula) pode convidar tantos pastores quanto forem necessários para se sentar à mesa. O problema não está aí, mas na existência de uma milicia armada e disposta a tirar o sangue dos infiéis. Este campo não negocia: sua única moeda de troca é a rendição desonrosa e incondicional. Para subir no palco democrático da MPB, o fascismo miliciano exigiria, por exemplo, nada menos que a conversão – ou expulsão – de toda “macumbeira LGBT” que promove ideologia de gênero. Ou seja, Bethânia teria que ser expulsa do palco para que a “aliança democrática” pudesse se realizar.
10. Mas não é necessário conversar com os evangélicos? Decerto, essa é talvez nossa tarefa mais urgente. Então está correta a performance de Caetano, certo? Sim, corretíssima – enquanto DIAGNÓSTICO. No entanto, anunciada fora a boa nova: é chegado o novo tempo do mundo. Um tempo em que não existe mais pacto nacional a se reconstruir, por pura falta de tempo – afinal, a jornada é 6×1, com doze horas empreendidas. Tempo de radicalização identitária enquanto norma geral, que não mais permite o estabelecimento de parâmetros de partilha e trocas suspostamente democráticos. Só o presente existe: Coruja Muda.
11.
Ao modo de aves cruzando as alturas
Milhares de peixes vermelhos e azuis
Na cega certeza de algum que conduz
Percorrem distâncias nas águas escuras
Mas no oceano tem mais criaturas
Que esperam famintas pra lhes devorar
E aqueles que escapam vão ter de esbarrar
Que nem peregrinos exaustos de sede
Nos braços dos homens que arrastam a rede
Cantando ciranda na beira do mar
(mestre Siba)
12. Mais do que construir canais de comunicação, é preciso refundar radicalmente os próprios pressupostos enunciativos, a partir do horizonte de sentido dos mais pobres – velha tarefa do materialismo dialético. Enquanto isso, o louvor de Kléber Lucas soa desencarnado, sem o fogo do espírito santo a lhe preencher de Glória – como se Caetano houvesse convidado um campeão de xadrez para disputar uma partida de vôlei. Uma mera citação, ali onde se exigiria a reconfiguração integral de toda linguagem.
13. Eu, que não presenciei o milagre, ouço a voz do anjo a sussurrar em meu ouvido. O problema nunca foi Caetano cantado um louvor. O problema é ninguém ter se convertido.
14. No conjunto, o louvor acaba funcionando menos como munição anti-fundamentalista do que como uma celebração dos valores iluministas do projeto – valores com os quais o próprio público caetanista parece já não mais se identificar. Uma performance civilizatória que gera interesse pela polêmica, mas sem abrir um canal de verdadeiro diálogo, impossível sob as atuais circunstâncias. Daí o gesto soar mais tímido que afrontoso, como quem confronta pedindo a benção. Mas que ao menos serve para desorientar um público que, no mais, há tempos vaga perdido pela escuridão.
15. Contudo, sejamos francos: a coisa toda é ainda pior. Suponhamos que os evangélicos não bolsonaristas decidam dar uma chance à plateia progressista, parando para ouvir o que ela tem a dizer. Qual seria o papo? “Beleza Caetano, a bola é tua. Qual é a boa?” Redução da jornada de trabalho? Saúde e educação universais e gratuitos? Reforma agrária? (Safatle) Ou, um papo meio careta de teto de gastos, shows à 500 reais, acusações de racismo, machismo e homofobia? Enquanto isso, a contraoferta fascista propõe, nada menos, que a instauração imediata do paraíso sob à terra para os puros de coração.
16. É a extrema direita, afinal, quem consegue capturar o espírito do tempo: o mundo como guerra santa (Paulo Arantes). Arrependei-vos, pois o fim está próximo. Nisso, os pecados multiplicam-se: quem tem carteira de trabalho está mais próximo do inferno do que os bilionários que constroem buracos de agulha do tamanho de camelos. Escolha seu lado, pois, como um ladrão à noite, Jesus voltará – precisamos estar preparados para recebê-lo à tiros. Só assim herdaremos o direito de gozar das virgens do paraíso.
17. “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada” (Mateus 10:34).
18. “O que fazer”? Decerto, a pergunta de um milhão de dólares, já diria camarada Lênin. Comecemos mudando os rumos dessa prosa: “ONDE fazer”? Antigos pressupostos do pacto comunitário que nos trouxe até aqui serão elididos e refundados sobre novas bases, populares e insubmissas. Enquanto o séquito fiel dos últimos doces bárbaros definha, às margens e à mingua, como um em derradeiro poema recitado por Bethânia.