1. O Festival: realeza negra em seu esplendor. Incontestável beleza de ver e sentir. O lema: sem racismo, sem machismo, sem homofobia. Sem sem sem. Desnorteado pela avalanche de beleza, me vi questionando se, frente a atordoante profusão de ausências, haveria espaço para algum “COM” – base elementar para construção de uma coletividade qualquer.
2. Uma coletividade fundada no “sem”, puramente reativa, pode até constituir um aglomerado de corpos, mas jamais será suficiente para formar comunidade.
3. De todos os “sem”, chama atenção um último, em particular. Sem ÓDIO. Ser antirracista sem odiar o racismo. Ser anti machista sem odiar o patriarcado. Que tipo de sujeito tem esse privilégio? É esse o modelo de empoderamento proposto pelo festival. Sem ódio. Sem luta. Sem política.
4. Empoderamento identitário como mecanismo de despolitização. A vitória do capital é também uma vitória sobre a imagem, como diria Debord. Não por acaso, no momento do show de Erykah Badu, a fila para fotos no stand do Multishow estava enorme.
5. Ame-se, ame-se, ame-se. Contudo, empoderar não é acolher. Quem acolhe o negro fracassado? Quem irá desempoderar-se? Spoiler: evangélicos são muito bons nisso. Autocuidado pode ser só mais uma forma de tacar o fod*-se.
Planet Hemp
6. A vitória do Capital enquanto estética. O show do Planet Hemp, politizado, muito além da cannabis. Genocídio negro. Hip Hop e hardcore em altíssima voltagem. O público, ao contrário, morno, entorpecido, com medo de se sujar. Entendo: o hardcore está em baixa e ninguém mais acredita no poder fálico da guitarra. Ainda assim, deve haver algo a mais.
7. B. Negão assume o microfone. De seu grave poderoso brota uma indignação swingada, um relato sobre o assassinato covarde do jovem Gabriel Renan, sobrinho de Eduardo Tadeo, morto em frente a uma loja da rede Oxxo. Sobreposição de desumanidades: a loja seguiu funcionando normalmente, com o corpo na calçada.
8. Alguns poucos aplausos tímidos, quase constrangidos, frente a uma maioria indiferente diante da dor de um jovem negro que, pra começo de conversa, deveria ser a razão de ser do festival. Mas o público estava bonito demais para se desempoderar com papo de genocídio.
9. Aliás, eis um excelente exemplo de identitarismo: virar as costas, indiferente, enquanto alguém aponta para o caráter sistêmico do racismo, celebrando nossas diferenças, ou o universal branco. O oposto do discurso do Planet Hemp, que coloca a pauta racial no centro do debate de modo a apontar suas implicações no conjunto da sociedade.
Léo Santana
10. Ele chegou. Definitivamente, o dono da p*rr* toda. Dois metros de altura. Dois de largura. Uma delícia indo ou voltando. Maromba, decerto, mas com um tchan a mais que poucos têm (e não, não estou falando do que pensastes). Leo Santana é sexy. Muito sexy. Compare ele com The Rock, Schwarzenegger, ou outro maromba sem molho. Crossfit baiano, pai. A pegada é outra.
11. Mas, é claro, não é (só) disso que se trata. GG é um dos mestres da swingueira – a meu ver, o mais potente e criativo gênero de música popular contemporânea, ao lado do funk. Com a diferença de que, ao contrário do funk, sua base é acústica, não eletrônica. É chão, aterramento, samba de roda com potência hardcore. Definitivamente, a swingueira é o futuro da música brasileira. Ou isso, ou talvez eu ainda esteja impressionado com o tamanho do GG.
Erykah Badu
12. Não sei nem por onde começar a descrever a experiência que foi o show de Erykah Badu. Na falta de certezas, comecemos pelo plano mais metafísico do corpo: seu olhar. Vejam: todos os shows do dia foram de ótimos a excelentes – GG, Jorge Aragão, Melly, Planet. E o todos esses artistas conquistaram o público ao criar uma cumplicidade pelo olhar – instrumento poderosíssimo. “A gente se fala no olhar.” Esse é o rito.
13. Erykah Badu, ao contrário, nos encara como quem chega de outra dimensão, portando nada menos que a Verdade Universal do Povo Negro. Sua presença instaura uma evidente superioridade, que não vem da fama, do sucesso ou do talento absurdo. Sua superioridade é de nível cósmico. Em diversos momentos, embora completamente hipnotizado, me peguei inconscientemente desviando olhar e baixando a cabeça, em estado de pura devoção.
14. Fico pensando nesses artistas negros que assumem a condição de entidades cósmicas, como Sun Ra, Badu, Monk. Não como fuga da condição racial, mas como revelação da condição negra enquanto Mito. Pois a raça não é senão isso, e falar desse lugar é enunciar-se desde um ponto de vista impossível: a voz antes da voz, enquanto rito inaugural da condição negra no Cosmos.
Timbalada
15. Timbalada. O tambor inventamundos. Novilíngua. O timbal rasgando inventando outras temporalidades. A partir daí tudo é terreiro. O ser em festa. Ao contrário do festival, no toque de timbaleiro tudo é político, pois a festa reorienta a gramática de nosso afetos. Ólù”gbà Njé, Njé Ngbó. A música segue sendo infinitamente maior que os festivais. Sorte a nossa.