Ressabiado, acompanho os cuidadosos malabarismos que A Emissora faz para não exibir a carta de despedida de Antônio Cícero, alegando eventuais gatilhos que ela pode suscitar.
A exibição espetacularizada da não exibição obviamente aumenta o fascínio do objeto. A carta já não é mais uma carta, mas um manuscrito com propriedades míticas em que se adivinha nada menos que o poder sobre a vida e a morte.
A emissora, obviamente, conta com isso.
O curioso é que, assistindo a 20 minutos desse mesmo jornal, encontrei muitíssimas mais razões para partir do que ao ler o canto de amor à vida deixado pelo poeta ao se despedir. Palavras que são um verdadeiro antídoto contra o apelo cotidiano para que abandonemos o jogo.
Viajo…
Fico imaginando outras razões para o incômodo com a carta, decerto menos nobres.
Talvez incomode o gesto do poeta ao recusar o perdão de Deus, por não considerá-lo uma entidade digna de perdoar o que quer que seja.
Ou a visceral declaração de amor à arte contida na ideia de partir por não conseguir mais “escrever bons poemas”. Recusar as débeis promessas de amor divino pela certeza – não menos débil – de amor à arte.
O choque de reconhecer que a vida eterna não vale a eternidade de um bom poema. Eis um segredo que vale a pena ocultar.
No fundo, o que nos “engatilha” é a profunda ambivalência inscrita no gesto de deixar a vida por amor a ela. Ambivalência radical que somente um poeta poderia sustentar assim, até o limite do não ser.
Poesia é o nome que damos a esse processo de transformar palavras em gatilhos.
Poesia é risco.
Não leiam.