Internet

Antonio Cícero

464382278 10162006238804078 1584744865277582723 N

Ressabiado, acompanho os cuidadosos malabarismos que A Emissora faz para não exibir a carta de despedida de Antônio Cícero, alegando eventuais gatilhos que ela pode suscitar.

A exibição espetacularizada da não exibição obviamente aumenta o fascínio do objeto. A carta já não é mais uma carta, mas um manuscrito com propriedades míticas em que se adivinha nada menos que o poder sobre a vida e a morte.

A emissora, obviamente, conta com isso.

O curioso é que, assistindo a 20 minutos desse mesmo jornal, encontrei muitíssimas mais razões para partir do que ao ler o canto de amor à vida deixado pelo poeta ao se despedir. Palavras que são um verdadeiro antídoto contra o apelo cotidiano para que abandonemos o jogo.

Viajo…

Fico imaginando outras razões para o incômodo com a carta, decerto menos nobres.

Talvez incomode o gesto do poeta ao recusar o perdão de Deus, por não considerá-lo uma entidade digna de perdoar o que quer que seja.

Ou a visceral declaração de amor à arte contida na ideia de partir por não conseguir mais “escrever bons poemas”. Recusar as débeis promessas de amor divino pela certeza – não menos débil – de amor à arte.

O choque de reconhecer que a vida eterna não vale a eternidade de um bom poema. Eis um segredo que vale a pena ocultar.

No fundo, o que nos “engatilha” é a profunda ambivalência inscrita no gesto de deixar a vida por amor a ela. Ambivalência radical que somente um poeta poderia sustentar assim, até o limite do não ser.

Poesia é o nome que damos a esse processo de transformar palavras em gatilhos.

Poesia é risco.

Não leiam.

Img 20191209 150955739 2
Acauam

Share this post

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *